Por Amir Labaki
Enquanto em quase todo o mundo a reabertura das salas de cinema é ainda cuidadosamente planejada, o impacto da pandemia obriga a reengenharia dos grandes eventos, inviabilizados todos deste primeiro semestre desde a segunda semana de março. Até o Oscar piscou.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas anunciou uma alteração excepcional nas regras de elegibilidade de títulos para a próxima disputa e, na última segunda-feira, adiou sua tradicional cerimônia de premiação para 25 de abril do próximo ano. Suspendeu-se provisoriamente a exigência de lançamentos dos filmes em salas, aceitando-se neste ano a inscrição de obras cuja estreia aconteça em plataformas online.
No universo dos festivais, a grande baixa foi o cancelamento da 73º. edição de Cannes, previsto para o mês passado. O principal evento do calendário mundial desenvolveu um programa de três atividades dispersas pelo correr do ano, a primeira das quais foi o anúncio de sua “seleção oficial” de 56 títulos no início deste mês, como aqui discutido.
Na próxima semana, de segunda a sexta, realiza-se o segundo braço de Cannes 2020, este sim abraçando uma estratégia via internet, sob a forma de um pioneiro Mercado de Filmes on-line. A iniciativa visa reduzir o impacto negativo na indústria audiovisual da anulação de seu maior ponto anual de encontro e de negociações de filmes prontos ou em desenvolvimento.
Celebrando sua 60ª edição em 2019, o Marché du Film contou então com nada menos que um recorde de mais de 12.500 participantes de 121 países. Pela primeira vez desde seu batismo em 1959, a feira não se desenvolverá simultaneamente ao festival no palácio na Croisette, mas sim como evento independente e virtual. Seu site busca reproduzir no ambiente da internet as diversas atividades habituais, com exibição de filmes por distribuidores, áreas de encontro on-line para a discussão de projetos e negócios, zona de conferências sobre temas que vão do impacto da pandemia à busca da equidade de gênero pela indústria, estandes virtuais de instituições e um exclusivo espaço para documentários, o Cannes Doc.
Desenvolvido na última década, inicialmente sob o selo “Doc Corner”, o Cannes Doc expandiu a presença do cinema não-ficcional na Croisette, com a organização de um Doc Day de encontros e homenagens, além de exibições para distribuidores, exibidores e curadores. O grande símbolo deste processo surgiu há cinco anos com a criação de uma Palma para documentários, o Olho de Ouro, em parceria com a La Scam, a associação francesa de autores multimídia.
Não haverá premiação não-ficcional tampouco este ano, mas o Olho de Ouro e Cannes Doc organizaram conjuntamente um debate no dia 25 em homenagem ao documentarista congolês Dieudo Hamadi, diretor do primeiro filme do Congo selecionado oficialmente pelo festival, “En route pour le milliard”, um dos apenas três documentários presentes na seleção anunciada por Thierry Frémaux no início do mês. O programa inclui ainda a exibição de filmes inéditos e em fase de finalização, apresentação de novos projetos, rodadas de encontros virtuais, workshops e debates.
Organizada pelo É Tudo Verdade, pela primeira vez um dos festivais em parceria oficial com Cannes Doc, uma das discussões reúne na próxima terça (23) a cineasta brasileira Petra Costa (Democracia em Vertigem) e o diretor argentino Andrés Di Tella (A Televisão e Eu) para tratar, no Doc Talk intitulado “História Através de Mim”, da vereda contemporânea de documentários latino-americanos em que convergem história e autobiografia. Apenas participantes do mercado poderão acompanhar a transmissão ao vivo, mas a gravação da íntegra do debate será disponibilizada no site do É Tudo Verdade.
Cinco representantes do festival participarão ainda de discussões virtuais com produtores, distribuidores e cineastas e de sessões on-line de novas produções. O diretor de Cannes Doc, Pierre-Alexis Chevit, saudou “a nova colaboração, sendo o É Tudo Verdade o primeiríssimo parceiro da América Latina na iniciativa”, classificando ainda como “muito estimulante” o debate proposto.
O É Tudo Verdade prepara para o período entre 24 de setembro e 4 de outubrosua 25ª edição competitiva, após ter realizado em março/abril passado um evento on-line celebrando a efeméride. O calendário dos festivais promete esquentar até lá.
O Festival de Marselha remarcou para fins de julho sua edição deste ano. Em fins de agosto, Bolonha recebe sua tradicional mostra de filmes de arquivos, Il Cinema Ritrovato. O festival de Telluride anunciou suas novas datas para meados de setembro, mesmo mês em que ainda estão previstos os dois maiores eventos fílmicos do segundo semestre, a Mostra de Veneza e o Festival de Toronto.E o maior festival internacional de documentários, o IDFA de Amsterdã, confirmou para as datas originais de novembro (18 a 29) sua 33ª edição, desta vez com um desenho híbrido. Haverá menos títulos, mais salas e ampliada presença on-line, incluindo seu mercado e o fórum de projetos. O mundo do cinema volta a mover-se, torcendo para novas ondas da pandemia não vingarem.