Por Amir Labaki
A primeira imagem representa para o mundo cinematográfico o mesmo que foi ver, em 27 de março passado, o Papa Francisco rezando sozinho numa desértica Praça de São Pedro no Vaticano. A câmera do Canal Plus francês revelava, no início da tarde do último dia 3, o vazio da sala do cinema UGC Normandie, na avenida parisiense Champs-Élysées, com a projeção da Palma de Ouro ocupando a tela. A exceção eram cinco técnicos e, no palco, o delegado geral do Festival de Cannes, Thierry Frémaux, o presidente do festival, Pierre Lescure, e um apresentador da emissora.
O evento marcava o anúncio da Seleção Oficial de Cannes 2020, inviabilizado na Côte d’Azûr pela pandemia do coronavírus. A tristeza e o ineditismo daquele plano inicial, em contraste com a memória da multidão lá reunida em outros anos para a mesma cerimônia, garantiram de saída a primeira imagem inesquecível do festival neste ano, independentemente do que veremos nos títulos selecionados.
Como tem sido tradicional, Frémaux apresentou sintética e efusivamente cada um dos 56 filmes escolhidos, dividindo-os por outra ordem que não a das seções estabelecidas do festival -a competição oficial, a mostra Um Certo Olhar, títulos de abertura e de encerramento, obras “hors concours”. A divisão regular foi substituída por outro critério, combinando a prévia presença ou não dos realizadores em Cannes e o subgênero dos títulos.
“Esta Seleção”, escreveu Frémaux apresentando-a no site do festival, “afirma que o cinema, que desapareceu das salas durante três meses em 2020, e pela primeira vez desde sua criação por Lumière em 28 de dezembro de 1895, está mais vivo que nunca”. Os números reforçam-lhe o argumento: foram 2067 filmes inscritos, frente a 1845 do ano passado.
A diversidade espelhada pela seleção reflete ainda uma mais ampla origem nacional: 147 países submeteram produções, em comparação aos 138 de 2019. A França mais que nunca lidera, com nada menos que 21 filmes (13, no ano passado). A saudar a ampliação da presença feminina, assinando 28,5% dos selecionados, frente aos 23,7% da edição passada.
“O Brasil vai mal”, comentou Frémaux do palco do UGC, referindo-se ao país de Bolsonaro e não à nossa cinematografia. Tanto que “Casa de Antiguidades” do estreante João Paulo Miranda Maria, conquistou uma vaga na seleção. Alertado por Walter Salles, Frémaux complementou ainda expressando sua preocupação com a crise emergencial atravessada pela Cinemateca Brasileira. A frente em sua defesa, expressa em vários manifestos e numa heroica manifestação presencial no último dia 4, diante de suas portas cerradas, capitaneada pela Associação Paulista de Cineastas (Apaci), ganha musculatura ao reafirmar-se internacional.
A apresentação da lista carrega ares simbólicos visando apoiar, com o selo de qualidade de Cannes, seus títulos na próxima distribuição em salas de cinema e nos festivais que conseguirem se viabilizar neste segundo semestre, abrindo hipoteticamente a temporada o prometido Festival de Veneza do início de setembro. É uma forma de defesa da magia do espetáculo cinematográfico coletivo, frisou o delegado geral. “Se se quer a mitologia dos filmes daqui a trinta anos, cumpre plantá-la agora”, afirmou Frémaux.
Se a priori parece algo desnatado o conjunto da Seleção Oficial 2020, seria injusto cobrar de um processo de escolha naturalmente prejudicado pela excepcional renúncia à participação no principal evento fílmico do mundo de produções que optaram por tentar vagas nos eventos que se confirmarem nos próximos meses ou por preservar o ineditismo até Cannes 2021. É o caso de dois participantes assíduos da Croisette como o holandês Paul Verhoeven, com seu “Benedetta”, e o francês Leos Carax, com “Annette”.
A relação reparte os selecionados entre “Fiéis” (14 filmes), “Novos Participantes” (14), “Estreantes” (16, um recorde), “Documentários” (3), “Animações” (4) e “Comédias” (5), estas todas francesas, além de um filme de episódios (Septeto, A Estória de Hong Kong). No primeiro grupo, destacam-se o duplo retorno do britânico Steve McQueen (12 Anos de Escravidão), com “Lover’s Rock” e “Mangrove”, Wes Anderson com o provável filme de abertura, “The French Dispatch”, o francês François Ozon, com “Verão 85”, o dinamarquês Thomas Vinterbeg, com “Druk”, e uma reforçada representação asiática, um ano após a Palma de Ouro do sul-coreano “Parasita”, com os japoneses Naomi Kawase (Mães Verdadeiras) e Kôji Fukada (The Real Thing) ao lado dos sul-coreanos Im Sang-Soo (Céu) e Yeon Sang-Ho (Península).
A restrita brigada de documentaristas é formada pelo congolês Dieudo Hamadi (A Caminho do Bilhão), os americanos Gregory Kershaw e Michael Dweck (Caçadores de Trufas) e o francês Xavier de Lauzanne (9 Dias em Raqqa). Também a sexta edição do Olho de Ouro, a Palma não-ficcional paralela, fica assim transferida para a próxima edição. Até lá, solitários mas solidários, cumpre ecoar a lembrança de Fellini em seu centenário no fecho do texto de Frémaux: “Viva Il Cinema”!