Por Amir Labaki
Num ano normal, e 2020 é tudo menos isto, com especial dramaticidade no Brasil, conheceríamos neste domingo o vencedor da Palma de Ouro da 73ª edição do Festival de Cinema de Cannes. Desde sua primeira edição efetiva em 1946, tendo sido cancelado em 1939 o festival inaugural pela eclosão da Segunda Guerra, será apenas o terceiro ano em que não será atribuída uma das duas estatuetas mais cobiçadas no universo do cinema -ao lado, naturalmente, do Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
Em 1950 não houve festival, para a readequação do calendário dos grandes eventos, com o evento francês passando a ocupar seu tradicional posto em meados do primeiro semestre. Em 1968, as revoltas de Maio o interromperam já iniciado. O que é um prêmio num ano traumatizado globalmente por centenas de milhares de mortes pelo mundo todo e pelo isolamento físico de centenas de milhões de pessoas devido a uma pandemia ainda sem fim à vista, enquanto não se desenvolver e distribuir uma vacina?
Evidentemente não cabe resposta. A interrupção da lista de vitoriosos da Palma de Ouro ficará desta vez como uma espécie de emblema vermelho nas futuras histórias do festival. Para a comunidade cinematográfica, destroçada com impacto inédito pela paralisação compulsória das atividades da produção à exibição, soma-se ao prejuízo concreto, para o qual pesa ainda a própria ausência das oportunidades e negócios catalisados pelos encontros e projeções durante o festival, o grande vazio simbólico instaurado pela ausência de uma das bússolas essenciais da arte cinematográfica. Tal se dar exatamente quando, pela primeira vez desde o duplo triunfo em 1955 de “Marty", a Palma de Ouro e o Oscar de melhor filme coincidiram no último ano na consagração de um mesmo título, “Parasita” do sul-coreano Bong Joon-ho, apenas contribui para exacerbar a sensação de vácuo.
A dezena de milhares de frequentadores habituais do festival compartilha “a ausência física” que seu diretor geral, Thierry Frémaux, confessou em entrevista ao El País sentir nestes dias. Também a sinto, esperando completar no próximo ano três décadas de presença anual semi-sonâmbula na Côte d’Azûr com tristes faltas que não completam os dedos de uma mão.
Uma cena de pesadelo, que viralizou na internet às vésperas da abertura cancelada de 12 de maio, mostrava um porco selvagem passeando pela orla da Croisette deserta de jornalistas, profissionais e turistas. Um plano-sequência de filme se esgueirou onde o cinema se fez ausente.
A 73ª edição de Cannes não se desenvolverá no Palácio do Festival e nas salas em torno e tampouco numa versão on-line. “Para mim não é possível um festival on-line. Isso não é um festival”, bem frisou Frémaux no mesmo depoimento, ecoando o que aqui escrevi há um mês. “Não queríamos cancelar. Nunca usei esta palavra”, ponderou. “Dividimos Cannes 2020 em três etapas”.
A primeira será o anúncio no início do próximo mês dos cerca de 50 títulos da seleção oficial, sem especificar quais teriam estado em competição, fora de concurso e no ciclo Un Certain Regard. A ideia é impulsionar, com o selo do festival, os lançamentos destes títulos quando as salas forem reabertas. Alguns selecionados foram confirmados por Frémaux em entrevista à edição on-line da Screen International: “The French Dispatch” de Wes Anderson, “Tre Plani” de Nanni Moretti, “Da 5 Bloods”, de Spike Lee, que marcaria o retorno da Netflix ao festival, com estreia em streaming confirmada para o próximo dia 12.
Entre 22 e 26 de junho, exclusivamente para profissionais, se desenvolverá um pioneiro Mercado do Filme on-line, com exibições de filmes para distribuidores e exibidores, debates de projetos e discussões sobre a conjuntura. Uma bela sacada sintetiza a mais justa e contundente defesa do cinema e da cultura feito por Frémaux a Screen: “Protegemos os bancos em 2008, agora vamos proteger cinemas, teatros e livrarias em 2020. Pessoalmente, para viver, eu preciso de meu banco. Mas também preciso de cinema”.
Por fim, haverá um festival de Cannes “itinerante”, com projeções nos grandes festivais do segundo semestre que se viabilizarem, almejando-se em especial uma parceria com o primeiro e principal deles no calendário, a 77ª. Mostra Internacional da Arte Cinematográfica de Veneza, entre 2 e 12 de setembro próximo. Mas haverá Veneza, situada perto do trágico epicentro italiano da pandemia?
Sua organização afirma-se confiante, embora imponha-se o ceticismo diante da persistência da emergência sanitária mundo afora, da dinâmica ainda desconhecida da reabertura das salas de projeção sob ocupação necessariamente limitada e da restrição internacional de viagens. Na era do coronavírus, é tolo bulir com bolas de cristal. Como cantou Doris Day para Hitchcock, o que será, será.