Por Amir Labaki
Respire fundo. O cineasta Fernando Grostein Andrade (Quebrando O Tabu) anunciou pelo Instagram preparar, em parceria com Patrick Hanser, um documentário ou série sobre Jair Bolsonaro. Segundo revelou Lauro Jardim, de “O Globo”, também Bruno Barreto já trabalha em “O Capitão”, um documentário sobre a campanha eleitoral do atual presidente, com imagens e entrevistas exclusivas.
Escapa ao arco temporal de “O Capitão”, mas um dos episódios centrais da obra de Grostein e Hanser certamente girará em torno da demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro, em 24 de abril último. A ruptura entre o juiz central da Operação Lava-Jato e o presidente remete a diversos antecedentes de nossa história política.
Elio Gaspari recordou em sua coluna como Getúlio Vargas foi finalmente apeado do poder em 1945 ao tentar uma interferência nas forças de segurança similar a que Moro denunciou e a que o próprio Bolsonaro confirmou em ações, como a indicação de apaniguados para chefiar a Polícia Federal. Muito se lembrou ainda das denúncias de Pedro Collor, que catalisaram em 1992 o impeachment de seu irmão, Fernando Collor, da Presidência e da indicação do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva à ministro da Casa Civil pela Presidente Dilma Roussef, cuja impugnação acelerou também o impeachment dela em 2016.
Trabalhando numa série documental a partir de meu primeiro livro, “1961-A Crise da Renúncia e A Solução Parlamentarista” (Brasiliense, 1986), sobre a renúncia do Presidente Jânio Quadros, a tentativa de golpe militar e a posse do vice-presidente João Goulart numa Presidência com poderes reduzidos, veio-me à mente que o paralelo histórico mais forte para a saída estrepitosa de Moro, acusando Bolsonaro de atitudes antirrepublicanas, é o “caso da mala” que, em agosto de 1961, opôs o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, a Jânio.
Lacerda foi a Brasília em 18 de agosto daquele ano para conversar com Jânio e voltou de supetão ao Rio, após ter sido procurado por um enviado do presidente, o Ministro da Justiça Oscar Pedroso Horta, com o que entendeu ser um convite para participar de um golpe de Estado, com fechamento do Congresso e tudo. O governador udenista logo contatou lideranças militares para condenar a proposta de golpe. Menos de uma semana depois, em outro dia 24, mas o daquele mesmo agosto, denunciou em cadeia de TV o convite para participar da guinada autoritária.
No ano anterior, Lacerda fora um dos principais avalistas junto à UDN da candidatura presidencial do franco-atirador Jânio, sob as bandeiras da “anti-política” e do combate à corrupção. Da mesma forma, Moro preparou o terreno para a resistível ascensão de Jair Bolsonaro, em campanha similar. Lacerda e Moro saíram ambos atirando ao romper com os demagogos que ajudaram a eleger. O governador da Guanabara almejava candidatar-se as eleições presidenciais de 1965 (canceladas logo após o golpe de 1964), como ao que tudo indica Moro também posiciona-se para uma candidatura em 2022.
O “caso da mala”, referência ao suposto desconvite de Jânio para Lacerda hospedar-se no palácio presidencial, prosseguiu na madrugada de 24 para 25 de agosto de 1961, com lideranças parlamentares preparando a convocação para Horta e Lacerda deporem na Câmara dos Deputados. Não houve tempo.
Acuado, com frágil base parlamentar, Jânio tentou no mesmo dia dar a volta por cima com a tática de renunciar para voltar nos braços do povo. Deu com os burros n’água, abrindo uma crise militar e uma crise institucional superadas apenas com o acordo político que condicionou a posse constitucional do vice Jango à redução de suas atribuições pela adoção do regime parlamentarista.
Bolsonaro também paga para ver -a seu modo. Sua estratégia de sobrevivência política passa agora, a contrapelo dos compromissos de campanha, pela atração do apoio parlamentar do chamado “centrão”, formado por partidos fisiológicos com líderes de reputação tudo menos que ilibada. Na esfera militar, onde sua base situa-se em escalões inferiores, estariam em pauta mudanças na cúpula do Exército.
Seus arroubos retóricos de índole autoritária apontam ainda para possíveis gestos extremos. Não se descarte que Bolsonaro se arrisque em lançar mão de outro malabarismo político com precedente histórico, datado de dois anos após a fracassa cartada da renúncia. A derrocada final de João Goulart foi sinalizada pela recusa pelo Congresso de aprovar a tentativa de Jango, já reinvestido de plenos poderes após o plebiscito de janeiro de 1963 ter sepultado o Parlamentarismo, de decretar o estado de sítio em outubro de 1963.
Visando desviar atenção, obter ainda que provisoriamente poderes excepcionais e ganhar tempo para fortalecer sua base no Congresso, frente à crescente possibilidade da abertura de um processo de impeachment, Bolsonaro poderia decretar o “estado de defesa” sob a justificativa da necessidade de enfrentar à escalada calamitosa da epidemia do coronavírus, como prevê o artigo 136 da Constituição.
Arriscado, diante da necessidade de aprovação parlamentar? Por certo. Impossível? Nem um pouco.
A farsa tragicamente já vivemos, a ver agora se repetiremos a história. Seria oportuno que Bolsonaro tapasse o nariz e assistisse a “Jango”. Já Grostein e Hanser deveriam papear logo com Sílvio Tendler.