Por Amir Labaki
Meu primeiro grande companheiro de isolamento, vencida esta autêntica quarentena inicial, foi Jean Gabin (1904-1976). O hábito agora também involuntariamente reforçado da visita noturna à cinemateca doméstica permitiu-me ver ou rever de forma menos aleatória alguns dos principais marcos de sua carreira. Como auxílio valioso, seis caixas de DVD recentemente lançadas pela Versátil nos oferecem Gabin em ao menos um clássico por coleção.
Sempre admirei o astro francês em obras-primas do insuperado período do cinema gaulês de logo antes da Segunda Guerra, em filmes como “A Grande Ilusão” (1937), de Jean Renoir, e “Trágico Amanhecer” (1939), de Marcel Carné. Quase desconhecia, porém, o Gabin do pós-guerra, que tem vários de seus momentos fortes presentes nos DVDs agora disponíveis, notadamente os policiais “Grisbi, Ouro Maldito” (1954), de Jacques Becker, “Sedução Fatal” (1956), de Julien Duvivier, e “Gângsteres de Casaca” (1963), de Henri Verneuil.
Nenhum ator protagonizou uma metamorfose similar diante das câmeras tendo por marco o conflito mundial entre 1939 e 1945. Ele mesmo era o primeiro a reconhecer. “Sim, há dois períodos: o de antes e o de depois da guerra”, afirma numa entrevista televisiva resgatada pelo documentário “Trágico Amanhecer - Última Expressão da Frente Popular” (2014), de Dominique Maillet, valioso extra do Blu-Ray francês da versão restaurada do filme dirigido por Carné a partir do roteiro de Jacques Prévert e Jacques Viot.
Lançado pouco meses antes do inicio da Segunda Guerra e da ocupação da França pelas tropas nazistas, “Trágico Amanhecer” é de fato o réquiem do período conhecido como Frente Popular, a última tentativa de unificar e fortalecer o pais através de uma coalizão governamental de esquerda antes da espiral final que encerrou o regime democrático, acelerou a sucumbência frente à sanha nazista e abriu o período de colaboração com o invasor por meio do governo do marechal Pétain em Vichy.
O vulnerável François de Gabin, que recorda em seu pequeno apartamento cercado pela polícia a formação do maldito quarteto amoroso que o levou a um assassinato, encerra a galeria extraordinária de interpretações dele no período. Não à toa Bertrand Tavernier, no segmento dedicado a Gabin em seu obrigatório documentário “Viagem Através do Cinema Francês” (2016), afirma ter sido ele “o primeiro ator a dar alguma consistência trágica ao herói popular e ao herói proletário” que revelava nas telas “o espírito da Frente Popular”.
Tavernier desenvolve com o auxílio de clipes precisos a fórmula originalmente sacada, ainda em 1950, pelo maior dos críticos de cinema franceses, André Bazin (1918-1958): “Gabin é o herói trágico do cinema contemporâneo”, precisando referir-se ao “Gabin de antes da guerra”. “Ele não interpreta uma história entre outras”, escreve Bazin, “interpreta, sim, sempre a mesma história, a sua; e ela só pode acabar mal, como a de Édipo ou de Fedra”. Vale conferir em quase toda a filmografia de peso de Gabin entre 1937 e 1939: “O Demônio da Algéria” de Julien Duviver, “Cais das Sombras” de Marcel Carné, “A Besta Humana” de Jean Renoir, “Trágico Amanhecer”.
Cinco meses após a queda da França, Gabin partiu para o exílio, recusando-se a trabalhar em seu país durante a ocupação. Entre 1941 e 1943, estrelou dois filmes em Hollywood (Brumas e O Impostor) mas o chamado ao combate foi mais forte. “Fui um dos poucos franceses a pagar para ir à guerra”, lembrou. “Eu comprei de volta meu contrato com a Universal”.
Unindo-se no norte da África à força naval da França livre liderada por Charles de Gauller, Gabin formava nas tropas que liberaram Paris em agosto de 1944. “Voltei com os cabelos francos”, recordou.
Seu retorno às telas não demorou, ainda em 1946 com “Mulher Perversa” ao lado de seu novo amor (Marlene Dietrich), mas nem ele, nem o cinema, nem a França eram mais o que haviam sido. “Não há mais utopia, ao contrário há feridas a tratar”, resumiu Tavernier.
Quase uma década, com mais de uma dúzia de atuações, representa o que o próprio Gabin mesmo chamaria “de período negro, em que a bandeira negra tremulava sobre a panela”, isto é, as contas não fechavam. Sua reinvenção veio apenas como o gângster generoso e ascético de “Grisbi, Ouro Maldito”.
Saíra de cena o herói trágico e trabalhador, galante e esguio, “incomparável em momentos de ternura e de vulnerabilidade”, como notou Tavernier. Ascendia o anti-herói duro e empoderado, tão volumoso quanto cético, fosse ele o chefão à procura do último golpe (Grisbi; Os Sicilianos) ou um inesquecível inspetor Maigret como na trilogia agora lançada pela Versátil (Assassino de Mulheres; O Castelo do Medo; Inspetor Maigret Acerta).
Em dois aspectos, contudo, Gabin jamais mudaria: na gravitas do homem e na sutileza do intérprete. “Adoro os atores”, confessaria enfaticamente numa de suas últimas entrevistas. “São eles que traduzem tudo”. Após nosso reencontro recente, nem Fonda, nem Olivier, nem Mifune, nem Paulo José, nem De Niro, nem mesmo von Sydow me parece equiparar-se a ele.