Por Amir Labaki
Um reencontro além-túmulo. Quatro batutas. O início de uma grande amizade. Três documentários, em plataformas distintas, celebram a alegria do convívio humano, para aplacar a nostalgia pelo contato direto na era do coronavírus.
O mais antigo deles registra um encontro que é a um só tempo real e fantasmagórico, uma visita inédita que também representa uma revisita. Em setembro de 1982 e janeiro de 1983, Eduardo Escorel refez um trecho da viagem etnográfica realizada por Mário de Andrade (1893-1945) na virada de 1928 para 1929 pelo Nordeste, mais precisamente sua passagem pelo Rio Grande do Norte, perto da fronteira com a Paraíba. O objetivo de Escorel era reencontrar e gravar sons e imagens do cantador de cocos Chico Antônio (1904-1993).
Ao escrever sobre ele, Mário não se contivera: “uma das sensações musicais mais fortes de minha vida foi ouvir o ‘coqueiro’ norte-rio-grandense Chico Antônio”. O encantado convívio de poucos dias no ocaso dos anos 1920 jamais se repetiu. Mais de meio século mais tarde, coube a Escorel reconectá-los.Quase octogenário, algo alquebrado, com um fiapo de voz, Chico Antônio não poderia manter “a voz quente e de uma simpatia incomparável” que encantara o escritor paulistano. Não tinha mais “os 27 anos espigados”, naturalmente, mas intacta mantinha a “simpatia apaixonante”.
“Chico Antônio, Um Herói com Caráter” (1983, YouTube) registra para a posteridade uma das personagens mais fascinantes do museu do canto popular delineado por Mário de Andrade, com uma curva dramática impecável, da primeira chegada de surpresa ao casebre em Pedro Velho ao retorno anunciado com mementos do encontro de 1929, sob a forma das fotos tiradas pelo próprio Mário e do ganzá a ele presenteado por Chico na hora da despedida. Um reencontro pode desafiar o espaço, o tempo e mesmo a mortalidade.
Minha segunda dica é literalmente um banquete. Disponibilizado generosamente em seu canal no Vimeo (https://vimeo.com/230008212) pelo co-roteirista e produtor Bebeto Abrantes, “3 Antônios e 1 Jobim” (1993), dirigido por Rodolfo Brandão, reúne em torno de uma mesa de almoço na Chácara do Céu, no Rio, quatro gigantes da cultura brasileira. São na verdade quatro Antônios: o crítico Antonio Candido (1918-2017), o escritor Antônio Callado (1917-1997), o compositor Antônio Carlos Jobim (1927-1994) e o filólogo Antônio Houaiss (1915-1999).
O filme tem por coluna vertebral um papo descontraído em torno da pasta à putanesca “al dente” cozinhada por Houaiss. A montagem o divide em capítulos: as biografias, o Brasil “brasileiro” e o “estrangeiro”, o golpe de 1964, os caros amigos comuns, mulheres. Contenho-me para preservar ao leitor a alegria da descoberta. É uma jornada fílmica a um outro país, desprezado e traído pela caquistocracia ora reinante.
Lançada há pouco pela HBO e ainda disponível para assinantes, a terceira sugestão é uma fascinante radiografia de uma amizade heterodoxa promovida e preservada sob a mediação da TV. “Ali & Cavett: A História das Fitas” (2018), de Robert S. Bader, é uma máquina do tempo. Transporta-nos para os cindidos EUA entre o fim dos anos 1960 e meados dos 1970, com o ápice da luta pelos direitos civis dos afro-americanos e da campanha pacifista contra a guerra no Vietnã. Uma época em que a TV aberta ainda monopolizava as atenções e campeões de boxe eram tão idolatrados quanto as estrelas de Hollywood.
Entre 1968 e 1975, Muhammad Ali (1942-2016) esteve por mais de dez vezes no “The Dick Cavett Show”, o mais prestigiado e iluminista programa noturno de entrevistas da televisão americana. Sua primeira participação aconteceu na aurora do talk show, pouco mais de um ano depois de Ali ter seu título de campeão mundial dos pesos-pesados cassado por recusar-se a atender ao alistamento obrigatório para participar do conflito no Sudeste asiático. Era o auge de sua vinculação com a Nação do Islã, grupo fundamentalista islâmico comandado por Elijah Muhammad (1897-1975).
Os debates públicos sedimentaram um companheirismo que se estendeu por quase meio século. Ali não demoraria a reconhecer a abertura do branquela, mirrado e erudito Cavett, chamando-o de “meu chapa” em pleno ar. “Agora você pode passear no Harlem”, emendou.
Por sua vez, Cavett, ativo e brilhante aos 80 como aos 30 anos, retribui hoje, reconhecendo no filme Ali como “meu melhor amigo”. “Apenas encontrá-lo iluminava o dia”, recordou para a Vulture.
Bader transformou uma canção de Dylan em certeiro réquiem para Ali: “May you always be courageous/Stand upright and be strong”. Que assim sejamos todos, até o reencontro.