Por Amir Labaki
É como viver dentro de um filme de terror. O isolamento doméstico e o distanciamento social, provocados pela crise sanitária do novo coronavírus e sua macabra contagem de vítimas planetárias, disseminaram essa metáfora. Tornou-se pesadelo acordado, concreto e cotidiano, aquilo fartamente contemplado antes apenas como enredos que acompanhávamos nas telas de cinema e de TV.
Não que o risco fosse inimaginável. Ainda em 1998 Jared Diamond, em “Armas, Germes e Aço” (Record), escrevia sobre os “muitos agentes patogênicos que tentaram saltar dos animais para nós -e a maioria fracassou”. O Covid-19 soma-se agora tragicamente à minoria que vingou.
A sensação largamente difundida é a de estar vivendo uma forma maligna da síndrome de “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), de Woody Allen. A diferença é que o que o sai da tela para adentrar o mundo real não é o galã de um filme de aventuras (Jeff Daniels) mas os agentes malévolos de uma das necrotopias fílmicas.
Como a realidade é maior que a ficção, combinam-se nesta transição elementos dramáticos de uma série de filmes formando um mosaico tenebroso. Algo similar já ocorrera nos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, quando estratégias homicidas de vilões dos blockbusters dos anos 1980 e 90 transferiram-se do cinema para ceifar vidas sob a forma de camicases em poder de aviões de carreira.
O acervo fílmico agora extravasado para nosso cotidiano situa-se principalmente na cinemateca de ficção científica do auge da Guerra Fria, a partir de filmes e telesséries dos anos 1950 e 60. A ameaça da guerra nuclear e a paranoia da infiltração comunista catalisaram enredos centrados em inimigos invisíveis, insidiosos, alienígenas -exatamente como o novo coronavírus, surgido no interior da China, ainda nominalmente comunista. Assim se rejuvenesceu esta outra metáfora.
Tudo se passa como se as tramas de várias distopias se combinassem para somar impacto ao pular das telas para a vida. Num texto para o jornal online espanhol eldiario.es, o cineasta Pedro Almodóvar foi um dos que melhor articulou por escrito esta sensação, precisando as referências fílmicas: “A série americana B, filmes geralmente excelentes (especialmente aqueles baseados nos romances de Richard Matheson, ‘O Incrível Homem que Encolheu’, A Última Esperança da Terra’, ‘Além da Imaginação’)”, além de “O Dia Em Que A Terra Parou”, “Com As Horas Contadas”, “Planeta Proibido”, “Vampiros de Almas”.
Um dos maiores especialistas mundiais em documentários, o americano Bill Nichols, também se voltou para o cinema de ficção científica dos anos 50 em duas postagens no Facebook. Iniciou também recordando “Vampiros de Almas”, realizado originalmente em 1956 por Don Siegel a partir de um romance seriado de Jack Finney na revista Collier’s (e refilmado com impacto similar por Philip Kaufman em 1978).
“Todo mundo é normal na pequena cidade da Califórnia até não ser”, escreveu Bill. “Os casulos incubam perto da vítima e, quando completam o processo de absorção da personalidade humana, substituem a pessoa real por um duplo (gerado pelo) casulo”. Nossas caminhadas diárias, mantendo a distância recomendada, remetem, no filme, àqueles que “ainda não foram dominados pelos casulos, ainda veem seus amigos e vizinhos ao seu redor, mas agora os temem”. Registrei exatamente esta sensação após minha primeira saída do confinamento no dia anterior à postagem de Bill.
Não menos certeira foi a lembrança por ele de “Pânico das Ruas” (1950), de Elia Kazan. Trata-se, afinal, de “um filme de 1950 em que um homem com uma certa forma de praga pode ser a morte da cidade de Nova York”. Já as imagens das metrópoles desertificadas por todo o globo remeteram-me de pronto à São Francisco aniquilada pela radioatividade nuclear de “A Hora Final” (1959), de Stanley Kramer, como sacou no ar na GloboNews seu correspondente em Buenos Aires, Ariel Palacios.
O Zeitgeist da era do coronavírus está impresso mais nesta filmoteca apocalíptica do que no recente “Contágio” (2011), de Steven Soderbergh, que com arrepiante presciência parece um docudrama “avant la lettre” da atual calamidade. “Contágio” está para nossos dias como “Nova York Sitiada” (1999), dirigido por Edward Zwick a partir da vidente trama de Lawrence Wright, anteviu o 11 de setembro. Que Wright esteja lançando exatamente agora um novo romance sobre uma epidemia global iniciada na Ásia, “The End of October” (Knopf), apenas reafirma seu faro jornalístico.
A História, estupidamente pronunciada morta em 1989, voltou para vingar-se neste início do século 21. E o fez didaticamente, cavalgando duas questões consideradas superadas pela humanidade contemporânea: o extremismo religioso e o cataclismo epidemiológico. Como em “A Hora Final”, cada um entoa hoje sua versão de “Waltzing Mathilda” e serve-se mais uma dose, enquanto aguarda a chamada definitiva pela roleta russa do Covid-19 -até que a medicina nos apazigue. Ao menos até a próxima pandemia.