Por Amir Labaki
Tudo começou em 25 de junho de 1987. O projeto de um programa de televisão dedicado à cultura grega mal se cristalizou, tínhamos diante de nós o espectro que assombra os continentes do documentário cultural e que Chekhov formulou para a eternidade: dizer coisas que as pessoas inteligentes já sabem e que os tolos nunca saberão ...”. É com esta introdução que o cineasta francês Chris Marker (1921-2012) abre “Symposium ou As ideias recebidas”, o primeiro dos treze episódios de “A Herança da Coruja” (L’Heritage de la Chouette), a série televisiva realizada por ele entre 1987 e 1989. Depois de longo tempo fora de circulação, o batismo de Marker na tela pequena foi restaurado há dois anos e pode ser agora assistido em streaming gratuito, até meados de abril, no É Tudo Verdade 2020 On-Line (www.etudoverdade.com.br).
Contexto é tudo. Cineasta desbravador e erudito, independente e prolífico desde a estreia em 1952 com “Olympia 52” (1952), Marker fazia pioneiramente a transição do filme em celuloide para o vídeo com “A Herança da Coruja”. Com o curta ficcional “La Jetée” (1962) já imprimira sua marca na renovação do cinema de ficção científica. Co-realizado com Pierre Lhomme, “Maio Alegre” (1962) impulsionara também a reinvenção do documentário na escola do Cinema Direto.
Sua numerosa produção militante de esquerda atingira o ápice em “O Fundo do Ar É Vermelho” (1978), um ensaio de arquivo sobre o Maio de 1968, inspirador, entre tantos, de “No Intenso Agora” (2017) de João Moreira Salles. “Sem Sol” (1982), que desafia definições mas talvez possa ser introduzido como um road movie planetário sobre o tempo, levara ao máximo seu gosto pela estrutura ensaística sob forma epistolar.
Enquanto ainda não se viabilizava seu projeto do coração, uma ficção sobre a devastadora batalha de Okinawa (abril-junho de 1945) intitulada “Nível 5” (1996), Marker filmou retratos do cineasta Akira Kurosawa (A.K., 1985) e da atriz Simone Signoret (Memórias de Simone, 1986). A aurora da TV por assinatura na França do final dos anos 1980, em busca do prestígio dos grandes autores do cinema, lhe ofereceria a oportunidade de experimentar território inexplorado: o da série televisiva não-ficcional.
Quase trinta anos mais tarde, o produtor Thierry Garrel, à época na nascente TV por assinatura La Sept, que logo se tornaria a atual Arte, lembraria: “(o ponto de partida) era esse conjunto de palavras, cada uma acompanhada de um breve argumento bastante vago, já que era precisamente uma questão de explicitá-las no decorrer dos filmes. Mas o projeto foi baseado em um conceito muito claro: explorar a sombra da Grécia antiga sobre nossas sociedades. Com o objetivo de abraçar o todo, desse ponto de vista, foi um projeto rosselliniano, que trata ao mesmo tempo das ciências, das artes, da política, da antropologia e da história. ‘Nada humano me é estranho’ era o nosso slogan, à Montaigne”.
Foram quase dois anos de produção, sessenta participantes (com ou sem fala), quatro banquetes, em Atenas (Grécia), Berkeley (EUA), Paris (França) e Tbilissi (Georgia), com o co-patrocínio (não sem atritos) da Fundação Onassis. A ideia original veio do roteirista Jean-Claude Carrière; a sugestão dos debates em torno de uma refeição, do helenista francês de Jean-Pierre Vernant (1914-2007). Em torno de mesas ou em gravações individuais, em exercícios iluministas de raízes na Grécia clássica, ouvimos filósofos como Cornelius Castoriadis e George Steiner, artistas gregos como o escritor Vassilis Vassilikos (“Z”) e a cantora Angélique Ionatos, e cineastas como Elia Kazan e Theo Angelopoulos.
“As entrevistas com os especialistas, essa passagem obrigatória, são aqui de uma rara vivacidade”, bem destacou o crítico Christophe Chazalon. “A maneira como Marker não corta hesitações nem exaltações, a arte dialética da edição, sempre mantém o pensamento do filme em movimento. Também é impressionante a maneira como Marker ainda consegue relacionar a episteme grega a um ‘aqui e agora’”.
Mas não eram “a Grécia antiga ou sua continuidade na Grécia atual” o “coração do seu assunto”, explicou o crítico Jean-Michel Frodon, um dos responsáveis pela recuperação em 2018 de uma das obras menos conhecidas de Marker. Este “coração”, lembra Frodon, “era e é, ainda e sempre, o mundo, o mundo contemporâneo em toda sua complexidade, sua violência, sua dinâmica”. É esta a herança de Chris Marker.