Por Amir Labaki
A pandemia do coronavírus (Covid-19) desafia os sistemas de saúde do Brasil e mundo afora assim como reformula nosso cotidiano e prejudica de forma especial a indústria do entretenimento e a economia criativa. Às vésperas de sua realização, o É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários reformulou seu programa original, diante das restrições radicais de mobilidade e do fechamento das salas de cinema e centros culturais em suas sedes em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Em sintonia com seus patrocinadores e parceiros, o festival vai desenvolver-se em duas etapas. A primeira, no período originalmente programado entre fim deste mês e início de abril, acontecerá sob a forma de um festival digital, ampliando as mostras on-line inicialmente já agendadas. Em setembro próximo, a segunda fase apresentará a vigorosa produção inédita selecionada para as mostras competitivas brasileira e internacional e programas fora de concurso.
A partir de meados da próxima semana já será possível conferir dois ciclos especiais on-line programados em parceria com o Itaú Cultural e Spcine.
À luz da efeméride dos 25 anos do É Tudo Verdade, ambos dialogam com a história do festival ao mesmo tempo em que abordam questões essenciais da cultura audiovisual de nossos tempos.
A mostra on-line no site do Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br.) tornou-se ainda mais oportuna. Seu tema é exatamente as mudanças contemporâneas na experiência cinematográfica. Com o fechamento das salas de projeção para o combate da pandemia, frisando nossa absoluta solidariedade com seus responsáveis e funcionários, inviabiliza-se a “situação cinema”, isto é, a tradicional relação pública entre os espectadores que partilham um filme numa sala escura. Nada tão radical poderia ser previsto nos cinco documentários nacionais selecionados, mas estão em focos as variadas crises no setor, assim como as mudanças tanto de hábitos quanto na área técnica.
Em “Quando as Luzes das Marquises Se Apagam” (2018), Renato Brandão reconstitui a ascensão e queda da Cinelândia paulistana, o elegante e popular circuito de salas de cinema de rua, desenvolvido sobretudo entre os anos 1930 e 1950 e hoje virtualmente liquidado, com a migração de parte das telas para os shopping-centers. Um fenômeno similar encontra-se em “Cinemagia - A História das Videolocadoras de São Paulo” (2017), de Alan Oliveira, mas abordando a saga posterior de um templo perdido da cinefilia: a videolocadora, nossas pequenas cinematecas de bairro varridas do mapa pela oferta audiovisual via internet.
Dois filmes retratam esforços pessoais contra a corrente. Em “Cine Mambembe – O Cinema Descobre o Brasil” (1999), Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi documentam o batismo ou a reconexão com a experiência cinematográfica dos frequentadores, aqui no Norte e Nordeste, das projeções de filmes em espaços não-convencionais com que por mais uma década percorreram o país. Já “Cine São Paulo” (2017), de Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli, acompanha minuciosamente a batalha pela reforma e reabertura de um secular cinema em Dois Córregos, no interior de São Paulo, pelo apaixonado empenho de seu dono septuagenário, seu Chico, um personagem que parece herdado de um antigo clássico do neo-realismo italiano.
A mesma paixão pelos filmes e similar carisma revelam-se nos protagonistas anônimos de “O Homem da Cabine” (2008), de Cristiano Burlan. São eles operadores cinematográficos, flagrados nos últimos momentos da projeção de filmes em celuloide, antes da radical conversão dos circuitos à tecnologia digital.
A curadoria exclusiva para os dez títulos do ciclo no Spcine Play (https://www.spcineplay.com.br.) propõe um pioneiro balanço da contribuição dos documentários dirigidos por mulheres no último quarto de século, como espelhado pela seleção do festival.
Pegadas estéticas às mais distintas revelam-se em obras essenciais de três gerações de diretoras, começando pela desbravadora Helena Solberg (Carmen Miranda – Bananas Is My Business,1995), saudando a geração revelada ainda nos anos árduos 1980 com cineastas como Sandra Werneck (Mexeu Com Uma, Mexeu Com Todas, 2017) até chegar aos novos talentos afirmados já neste século 21, como Andrea Pasquini (Os Melhores Anos de Nossas Vidas, 2003) e Marília Rocha (Aboio, 2005). Mesmo um ciclo com o dobro de títulos seria insuficiente.