Por Amir Labaki
Sombra minha. Assim Mário de Andrade (1893-1945) informalmente intitulou o mais célebre autorretrato que captou com sua “codaque”, em janeiro de 1928, na fazenda de Santa Tereza do Alto de Tarsila do Amaral. Também este poderia ser o título, ou ao menos o subtítulo, de dois documentários de pegada autobiográfica que acabam de lançar dois dos maiores artistas da fotografia brasileira – a fotógrafa e documentarista Maureen Bisilliat e o diretor de fotografia e cineasta Lauro Escorel.
Bisilliat batizou seu filme de “Equivalências -Aprender Vivendo”. já disponível em DVD do IMS. “Fotografação”, emprestando o termo cunhado também por Mário de Andrade, é o título do filme de Escorel, em cartaz desde a semana passada, após a pré-estreia como programa especial do É Tudo Verdade 2019.
Entre inúmeras convergências entre os projetos, destaca-se o fato de a gestação de ambos ter originado obras paralelas autônomas. No caso de Bisilliat, está em cartaz até 5 de abril, no IMS-SP, a série de instalações “Agora ou Nunca -Devolução”, com co-curadoria de Rachel Rezende. No ano passado, por sua vez, Escorel lançou no Canal Brasil sua série de cinco episódios sobre a história da fotografia brasileira, “Itinerários do Olhar”, disponível pelo Canal Brasil Play.
“Equivalências” e “Fotografação” irmanam-se na revisita dos próprios percursos artísticos, mas assumem estilos absolutamente distintos. O filme de Bisilliat é um fluxo de memórias, abraçando vida e obra, do nascimento na Inglaterra passando pelas andanças pelo mundo nos anos de formação até a fixação no Brasil com o desenvolvimento de uma extraordinária carreira fotográfica -bem definida por Rezende, no texto da abertura da exposição, como o da revelação de “um certo Brasil, atemporal e profundo, sobretudo o dos indígenas e do sertanejo”.
Na própria narração de seu documentário, Escorel explica que o ponto de partida foi ter se dado “conta da ligação que se criara entre o meu trabalho como fotógrafo de cinema e o trabalho de fotógrafos que atuaram no Brasil entre meados do século 19 e meados do século 20”. Esta dimensão autorreflexiva contudo apenas pontua o filme, sobrepondo-se generosamente a ela a pesquisa histórica e social da fotografia no país.
Assim, Bisilliat nos oferta reencontros com pessoas e lugares que marcaram sua trajetória, numa cronologia mais sentimental do que biográfica. Entre outros, ei-la com Ann Bagley, a colega dos estudos de artes na juventude, na São Paulo e Nova York dos anos 1950; com o escultor baiano Mario Cravo (1923-2018), um dos guias que resultou na série reunida em “Bahia Amada Amado”; e com o jornalista Audálio Dantas (1929-2018), seu companheiro de pauta na histórica reportagem sobre as “mulheres caranguejeiras” da Paraíba publicada inicialmente na revista “Realidade”.
Por seu turno, Escorel faz florescer em arquivos e em entrevistas com especialistas em fotografia, como Boris Kossoy e Milton Guran, uma erudita reconstituição da trajetória desta arte entre nós, dos pioneiros daguerreótipos de 1840 do abade Louis Compte no Rio ao duplo eixo de modernização da fotografia brasileira no pós-guerra: a revista “O Cruzeiro”, com Jean Manzon (1915-1990) e José Medeiros (1921-1990), e os fotoclubes, de José Oiticica (1882-1957) e Thomaz Farkas (1924-2011), entre outros. Durante a jornada, ele destaca a dívida para com as fotos do Rio de Janeiro do Segundo Reinado de Marc Ferrez (1843-1923) para o trabalho em “O Xangô de Baker Street” (2001); confessa que conheceu o Mário de Andrade fotógrafo apenas durante a produção de “Chico Antônio, Um Herói Com Caráter” (1982); e lembra como o recurso quase exclusivo à “luz natural” ao fotografar “São Bernardo” (1972) foi inspirado pelas pioneiras incursões cinematográficas de Medeiros e Luiz Carlos Barreto.
Também em “Equivalências” marca presença Mário de Andrade. “O Turista Aprendiz”, seu diário de viagens ao Norte e Nordeste em 1927 e 1928, inspirou o roteiro para uma revisita em 1985 por Bisilliat, resultando numa série fotográfica e no documentário “Decantando as Águas”. Não surpreende, portanto, que Escorel a tenha por interlocutora essencial no decorrer de “Fotografação”.
Mais até que em “Equivalências”, é neste diálogo que o olho encantado de Bisilliat revela-se também através da leitura dos trabalhos de seus precursores, destacando a vida nos homens como formigas das imagens de Ferrez, o pioneirismo abstrato das fotos de Mário, o desnudamento modesto e certeiro de Marcel Gautherot (1910-1996). A cumplicidade entre Bisilliat e Escorel nesta inteligência do olhar catalisa uma conversa inesquecível, entre esses dois “filhos de diplomata”, como de saída nota ele, para rápida concordância dela. “Traça o caráter”, assegura Bisilliat. "É a busca da raiz”.
Na delicadeza com que reconstituem esta procura, “Equivalências” e “Fotografação” fascinantemente se complementam. São agora também sombras nossas.