2019 encerrou-se como um bom ano para o cinema, excelente para o reconhecimento do cinema brasileiro mundo afora, e nada mal para o documentário. Duas tendências da produção não-ficcional mais nos marcaram a retina e o coração: o filme de arquivo e o documentário em primeira pessoa.
Comecemos pelo segundo, afinal o mais presente entre as principais premiações do ano e bem representado na disputa pelo próximo Oscar em fevereiro. É simbólico que duas variações desse subgênero tenham dividido em maio o Olho de Ouro de melhor documentário no Festival de Cannes: “For Sama” (para sama), de Waad al-Kateab e Edward Watts, e “La Cordillera de los Sueños” (a cordilheira dos sonhos), de Patricio Guzmán.
Ambos partem de experiências pessoais para abarcar dramas políticos, sociais e também particulares de todo um país. Em “For Sama”, o foco é a Síria destruída pela guerra civil desde 2011. “La Cordillera”, por seu turno, examina o espectro trágico do pinochetismo (1973-1980) sobre o Chile.
São as vivências e vozes de Guzmán e de al-Kateab (Watts a auxiliou a partir da edição) que nos conduzem por narrativas que assumem estruturas distintas. “For Sama” capta a história tragicamente à quente, com a gravação pela cineasta do cotidiano de violência, crueldade e morte a que foi submetida a população de Aleppo. Materiais de arquivo e entrevistas com testemunhas da repressão e analistas do custo social do autoritarismo político e da iniquidade econômica combinam-se em “La Cordillera”.
Classificado como “For Sama” entre os 15 semifinalistas para o Oscar 2020, “Democracia em Vertigem” de Petra Costa também aborda um traumático período histórico, o da ascensão e queda do PT no poder (2003-2016), seguido pelo coroamento na presidência de seu maior nêmesis, Jair Bolsonaro, por meio do depoimento da cineasta. O motor de ambos filmes é o impacto privado nas histórias íntimas da História com “h” maiúsculo.
Algo similar se encontra no mais premiado documentário deste final de ano, “A Media Voz” (em sussurros), das diretoras cubanas Heidi Hassan e Patricia Pérez Fernández. Vencedor do IDFA e da disputa documental latino-americana de Havana (da qual foi jurado), investiga as cicatrizes do autoexílio europeu das duas cineastas, desesperançadas com os rumos de seu país natal e desiludidas com as agruras que esmaeceram os róseos sonhos de novas vidas no exterior.
Três mestres do documentário em primeira pessoa marcaram o ano com novas obras de notável renovação. O americano Alain Berliner abre, em “Letter to the Editor” (carta ao editor), seu baú pessoal de mais de 40 anos de fotos recortadas do The New York Times para mergulhar a um só tempo num vício privado e na trajetória pública dos eventos do período. Em “Ficción Privada”, o argentino Andrés di Tella recorre à reencenação para reconstituir a história de amor de seus pais. Por sua vez, em “I Walk” (eu ando), o dinamarquês Jorgen Leth reflete sobre o próprio envelhecimento ao registrar seu cotidiano e revisitar momentos e personagens de sua extensa e original filmografia.
A ousadia de Berliner cruza os dois eixos, misturando memória e arquivo, valendo-lhe o prêmio da disputa inaugural do uso de materiais de acervo no IDFA do mês passado. Igualmente híbrido, entre seus competidores, destacado com uma menção na categorias dos filmes de estreante, encontrava-se “Fico Te Devendo Uma Carta sobre o Brasil”, da brasileira Carol Benjamim, sobre o drama familiar sob a repressão da ditadura militar de 1964.
Três filmes construídos basicamente a partir de filmagens de arquivo concentraram as atenções em 2019. Lançado ainda no final do ano passado no Reino Unido, “They Shall Not Grow Old” (eles não envelhecerão), de Peter Jackson, reconstitui o “sangue, suor e lágrimas” também da Primeira Guerra (1914-1918) a partir dos registros fílmicos, mudos e em preto e branco, preservados pelo Imperial War Museum de Londres. Alternando-os com depoimentos de sobreviventes do conflito, conquistou um imponente resultado de público ao mesmo tempo em que detonava uma intensa discussão filosófica ao submeter o material à colorização e à adição de efeitos sonoros.
Opção diametralmente distinta, com radical fidelidade ao material bruto, foi escolhida pelo americano Todd Douglas Miller em “Apollo 11”, um dos favoritos ao Oscar, e pelo ucraniano Sergei Loznitsa em “State Funeral”, exibido no recente Festival do Rio. Ambos articularam suas narrativas, sem narração em off, a partir de tesouros fílmicos preservados respectivamente pela Nasa, sobre a pioneira visita do homem à Lua em 1969, e pelo Arquivo Estatal Russo de Cinema Documentário e Fotografia, documentando os três dias do operístico funeral do ditador soviético Joseph Stálin em março de 1953.
Novas veredas não faltam para o passado iluminar o presente. O fundamental é ouvi-lo. Bom ano!
PS. O colunista dá férias ao leitor nas próximas quatro semanas, voltando em
7 de fevereiro.