Por Amir Labaki
Dois dos principais prêmios da 32ª edição do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA) foram atribuídos a filmes dirigidos por jovens diretoras, espelhando a maior representatividade feminina na seleção deste ano. A disputa principal de longas-metragens foi vencida por “A Media Voz”, das cubanas Heidi Hassan e Patricia Pérez Fernández. Já o prêmio do público ficou com “Para Sama”, dirigido pela jornalista síria Waad al-Kateab em parceria com o britânico Edward Watts, que dividira em mapassado o Olho de Ouro de melhor documentário de Cannes 2019 com “A Cordilheira dos Sonhos” do chileno Patricio Guzmán.
“A Media Voz” estrutura-se a partir de videocartas enviadas das distintas novas moradias europeias da dupla de cineastas (Hassan na Suiça, Pérez Fernández na Espanha), retomando uma amizade de infância interrompida por 15 anos de experiências de migração. Em estilos marcadamente distintos, mais direto da primeira, impressionista da segunda, a correspondência audiovisual aborda o passado cubano comum, os desafios da reintegração em países distantes, os desenvolvimentos de suas vidas privadas, a tristexa partilhada pela longa separação.
Como aqui já discutido, “Para Sama” assume a forma uma carta em primeira pessoa de al-Kateab para a filha, radiografando a bárbara experiência da luta pela vida na Aleppo destruída pela guerra civil iniciada na Síria há mais de meia década. Sua principal inovação frente à vaga recente de documentários sobre o conflito sírio é registrá-lo a partir da experiência feminina. A extensa lista de premiações internacionais e indicações em prêmios paralelos nos EUA o credencia como um dos mais vigorosos concorrentes ao próximo Oscar de documentário de longa-metragem.
São também autobiografias no feminino os dois filmes brasileiros distinguidos pelos júris do IDFA 2019, encerrado no último domingo. Representando a Universidade de Cinema e TV de Munique, o curta “Saudade” da diretora gaúcha Denize Galião venceu a disputa dos filmes de estudantes. Por sua vez, “Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil”, em que Carol Benjamim recorda o impacto familiar da repressão da ditadura militar brasileira de 1964, recebeu uma das menções especiais da competição de estreantes, a First Appearance. Este duplo reconhecimento, no principal evento cinematográfico internacional dedicado à não-ficção, reafirma o que o critico britânico Jonathan Romney classificou no mais recente número da revista Sight & Sound como “ano de ouro” do cinema brasileiro nos festivais mundiais de 2019, paradoxalmente no momento mais dramático de paralisia da produção com a ascensão do governo Bolsonaro.
A premiação do festival holandês também destacou autobiografias no masculino, numa safra pródiga no gênero como atestaram “I Walk”, de Jorgen Leth, e “A Cordilheira dos Sonhos”, analisados na coluna da última semana. O novo prêmio para o tratamento mais inovador de materiais de arquivo foi para “Letter to the Editor” (Carta para o Editor), em que o mestre americano Alan Berliner rearticula mais de 40 anos de fotos recortadas das edições do “The New York Times”. Já “Anticlockwise” (No Sentido Anti-horário), sobre uma década de atribulada militância reformista da família do diretor iraniano Jalal Vafaaee, venceu a competição de médias-metragens.
Documentários em torno de questões sociais específicas também marcaram a lista de premiados. A citada competição First Appearance consagrou “Solidarity” (Solidariedade), de Lucy Walker, uma recuperação da memória da perseguição a lideranças sindicais da indústria de construção britânica na primeira década deste século. Participando tanto da disputa internacional quanto da holandesa, “Punks”, de Massja Ooms, que retrata jovens problemáticos sob supervisão, levou os novos prêmios de melhor direção de fotografia e de melhor montagem, na competição principal, assim como uma menção nacional.
A também pioneira distinção de melhor diretor ficou com o iraniano Mehrdad Oskouei pelo filme de abertura “Sunless Shadows” (Sombras Sem Sol). Oskouei combina depoimentos para a câmera e registros do cotidiano de um grupo de adolescentes iranianas detidas num centro de detenção juvenil devido à experiência comum de terem matado homens das próprias famílias. Sim, contas feitas, foi um IDFA, de uma maneira ou de outra, centrado em mulheres. Já era tempo.