Por Amir Labaki, de Amsterdã
A 32ª edição do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã encerra-se neste domingo (1/12) marcada por uma seleção mais inclusiva, marcante presença brasileira, mais extensa ocupação na cidade holandesa e sob o signo de potentes novas obras dos dois mestres homenageados. O dinamarquês Jorgen Leth, aos 82 anos, recebeu na última quarta-feira (27) o Prêmio pela Carreira e apresentou aqui a pré-estreia mundial de “I Walk” (Eu Ando). Por sua vez, o chileno Patricio Guzmán , 78 anos, teve sua obra celebrada pela retrospectiva do ano, foi o curador do ciclo “Top Ten” com os títulos que mais o marcaram e exibiu “A Cordilheira dos Sonhos” , um dos dois títulos premiados com o Olho de Ouro de melhor documentário de Cannes em maio último.
Sei que sou suspeito ao escrever sobre Leth. Afinal dediquei a ele meu primeiro documentário de longa-metragem, “27 Cenas Sobre Jorgen Leth” (2008), um ensaio sobre uma das mais originais e inovadoras filmografias documentais do pós-guerra. Poeta, performer, comentarista esportivo, diretor de documentários e ficções, há quase 60 anos sua presença e sua criatividade insuflam inteligência e vitalidade na cena cultural planetária.
Exagero? Basta lembrar que, em fevereiro último, um dos mais caros spots publicitários do mundo, no intervalo do Super Bowl (a final do campeonato de futebol americano), exibiu nada menos que a clássica cena de Andy Warhol comendo uma hambúrguer, do extraordinário “66 Cenas da América” (1982) de Leth.
Quando não abertamente autobiográficos (Aarhus, 2005; O Ser Humano Erótico, 2010), seus melhores filmes sempre estamparam sua assinatura marcados por seu corpo e por sua voz (Vida na Dinamarca, 1971; Um Domingo no Inferno, 1977). Compreende-se, assim, o impacto de ouvi-lo num timbre menos firme e assisti-lo algo claudicante no explícito ensaio sobre o próprio envelhecimento corajosamente documentado em “I Walk”.
Seu novo filme é a um só tempo uma viagem no espaço e no tempo. Leth retorna ao Haiti, onde por mais de duas décadas morou por parte do ano, para revisitar os escombros deixados pelo terremoto de 2010. Com o filho cineasta Asger Leth (Ghosts of Cité Soleil, 2006), que assina a ideia original do filme, viaja ainda para reencontrar o prazer do contato com a natureza, e de filmá-la ainda em estado bruto, nas florestas do Laos.
Por sua vez, o deslocamento no tempo segue em paralelo por meio de citações de cenas de alguns de seus primeiros filmes e do reencontro com dois dos mais marcantes protagonistas de sua filmografia. Não os identifico, evitando spoilers, para preservar ao leitor/espectador o impacto inesquecível das revisitas. Poucas vezes assisti em filme traduções mais pungentes e concentradas do inexorável pedágio do tempo vivido.
Também Patricio Guzmán faz uma dupla jornada pelo tempo e pelo espaço em “A Cordilheira dos Sonhos”. Assim como “I Walk”, trata-se de uma reflexão ancorada na passagens dos anos, diferenciando-nos por ser, no caso do chileno, tão íntima quanto social.
Baseado na França desde sua fuga para o exílio com a ascensão da brutal ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006) no Chile em 1973, Guzmán volta a Santiago para um balanço a um só tempo nacional e geracional. “Não reconheço a cidade em que nasci”, afirma de pronto. Imponente, a cordilheira dos Andes que enquadra toda a capital chilena surge como metáfora. De que, várias respostas nos vão sendo ofertadas durante o documentário, tanto por Guzmán como por seus articuladíssimos entrevistados.
Todos os cinco são artistas: o escritor Jorge Baradit, os escultores Vicente Gajardo e Francisco Gazitúa, a música Javiera Parra, o documentarista Pablo Salas. Testemunham, cada qual a sua maneira, como o passado, violento e opressor, vive no presente chileno–isso, às vésperas da explosão social imediatamente posterior à estreia do filme em Cannes.
“A Cordilheira dos Sonhos” encerra com certo ar profético a trilogia reflexiva aberta por “Nostalgia da Luz” (2010) e “O Botão de Pérola” (2015). Se sua obrigatória trilogia anterior, “A Batalha do Chile” (1975-1979), sobre a ascensão e queda do governo de Salvador Allende (1908-1973), é por Guzmán definida como “um passado que me persegue”, o fecho do novo tríptico de forma inédita o ancora ao presente e o projeta ao futuro chileno.
Trata-se finalmente de encarar a herança, sob a forma de empobrecimento e maior iniquidade social, do Chile como laboratório preferencial da escola econômica neoliberal de Chicago. Sim, a mesma hoje em voga no Brasil sob a batuta de Paulo Guedes.
Se o cinema de Guzmán nunca pareceu mais urgente, ele nos conta em Amsterdã já estar preparando um novo filme. Também Leth garantiu aqui não ser “I Walk” seu filme de despedida. Poucos mestres derrotaram o preço do tempo com similar vigor.