Por Amir Labaki
Na próxima quarta (2/10), o Itaú Cultural inaugura em São Paulo a Ocupação Eduardo Coutinho, co-apresentada pelo Instituto Moreira Salles. Será curioso conferir como se traduziu um artista cuja obra madura se ergueu do encontro inédito, pessoal, irrepetível ao formato de uma exposição ainda que multimidiática, envolvendo painéis, memorabilia, trechos de filmes, depoimentos inéditos, além de exibições de filmes (em sala e on-line), um curso, um livro e uma masterclass, de seu amigo e produtor João Moreira Salles, às 19h da outra segunda, dia 7.
Entitula-se “Como Fazer Cinema com Quase Nada: a Gramática Mínima de Eduardo Coutinho” a palestra de João. A ideal central foi resumidamente adiantada pelo documentarista de “Santiago” (2007) e editor fundador da revista piauí no debate sobre seu mais recente filme, “O Intenso Agora”, com Eduardo Escorel, montador do filme, ocorrido na 16a. Conferência Internacional do Documentário no É Tudo Verdade 2017. Como é possível conferir na íntegra no YouTube, João discorre como Coutinho foi despojando seu cinema de todo aparato tradicional até reduzi-lo a elemento mínimos: diante da câmera estática, apenas uma locação cada vez mais desnuda, uma cadeira, e uma pessoa comum por ele entrevistada.
O crítico de cinema e cocurador desta Ocupação, Carlos Alberto Mattos, já apontava na direção desta ideia-força ao escrever em seu livro de entrevistas com o cineasta, “Eduardo Coutinho – O Homem que Caiu na Real” (Festival de Cinema de Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2003): “Quanto menor o espaço de ação, mais funda é a investigação”. Contendo o mais longo depoimento autobiográfico em texto do diretor de “Cabra Marcado Para Morrer” (1964-84), o pequeno e valioso volume português, esgotado, serve agora de base para o livro de Mattos que acompanha a mostra, “Sete Faces de Eduardo Coutinho” (Boitempo/Itaú Cultural/IMS).
A Ocupação Eduardo Coutinho radiografa sua vida e obra a partir de treze eixos temáticos. O primeiro trata de sua formação, jovem paulistano nascido em 1933, estudante de Direito no Largo São Francisco por breve período, levado pela paixão por cinema à Paris para cursar como bolsista o Institut des Hautes Études Cinematographiques (Idhec) de 1957 a 1960.
Outro módulo flagra sua ambígua e dinâmica relação com a televisão. Foi graças à sua participação respondendo sobre Charles Chaplin no programa “O Dobro ou Nada”, da TV Record, que Coutinho pôde bancar sua primeira e essencial viagem à Europa.
Já na década de 1970, foi ao participar da equipe regular do núcleo pioneiro do Globo Repórter, com produções como “Seis Dias em Ouricuri” (1976), que Coutinho converteu-se ao documentário. Ainda assim, sua repulsa estética à superficialidade, à fragmentação e à algaravia da produção televisiva contemporânea o levou a um isolado exercício de cine-ensaio em “Um Dia na Vida” (2009).
Mais de metade dos módulos da exposição giram compreensivelmente em torno do desenvolvimento de sua produção madura sob a forma do “cinema de conversação”. O “efeito câmera” trata da relação estabelecida entre seus personagens reais, como a inesquecível Elizabeth Teixeira de “Cabra Marcado para Morrer”, e o equipamento de filmar.
Aos poucos, sobretudo a partir de “Santo Forte” (1999), consolida-se seu “dispositivo”: um método todo próprio, com regras claras, geralmente explicitadas ao espectador na abertura dos filmes, para um cinema centrado na conversa sobre determinado tema com desconhecidos, numa locação específica, por um limitado período. Parafraseando um de seus filmes, o módulo “O Edifício Coutinho” articula este método e sua fiel rede de colaboradores, com destaque para a montadora Jordana Berg e o diretor de fotografia Jacques Cheuiche.
“Potência na Fala” e “Conversas em Crise” investigam a centralidade da palavra falada em sua produção e momentos disruptivos surgidos inesperadamente da própria dinâmica da conversa filmada. “Jogos de Cena”, parafraseando outra de suas obras, demonstra a familiaridade de Coutinho com a representação, ficcional ou autoficcional, desde seu curta de formação no Idhec (O Telefone) e passando por sua breve experiência teatral no retorno ao Brasil.
Estabelecido este tabuleiro, módulos destacam assuntos e questões que transversalmente cruzam-lhe os filmes em suas diversas fases: a História como refletida nas histórias individuais, o recurso a citações, a progressiva renúncia à escrita, a importância da religião, o obsessivo registro de improvisos de canções. Sim, é tudo Coutinho. Dá até vontade de fumar.