Por Amir Labaki
Não haverá surpresa se dois lançamentos recentes se inscreverem no futuro como marcos de uma efetiva equiparação entre mulheres e homens na indústria audiovisual e de uma mais justa avaliação do talento feminino para o desenvolvimento da história dos filmes. Primeiro, em sua edição dupla de julho/agosto último, o Cahiers du Cinéma dedicou sua capa e um dossiê de setenta páginas a “Une Histoire de Réalisatrices” (uma história das realizadoras). Nos festivais de Telluride (EUA), na semana passada, e de Toronto (Canadá), nesta semana, o cineasta britânico Mark Cousins (A História do Cinema: Uma Odisséia, 2011) acompanhou a estreia mundial das 14 horas de sua nova série histórica: “Women Make Film: A New Road Movie Through Cinema” (mulheres fazem filme: um novo ‘road movie’ através do cinema).
É ainda possível encontrar em bancas com revistas importadas o número especial do Cahiers, mas ainda não vi os cinco episódios da nova série do prolífico Cousins, que tampouco tem estreia por aqui agendada. Para apresentá-la terei de me fiar em sua descrição por seu programador no festival canadense, o americano Thom Powers, jurado do É Tudo Verdade 2015 e autor de um dos melhores podcasts (em inglês) sobre documentários, Pure Nonfiction.
De saída, as abordagens distinguem-se pelo enfoque: autoral e histórica, como não poderia deixar de ser, na revista francesa; temática e estética, na produção britânica, que apresenta como uma das produtoras executivas e narradoras a atriz britânica, e constante parceria de Cousins, Tilda Swinton.
O Cahiers dedica verbetes introdutórios a nada menos que 104 diretoras, com quase outras tantas sendo citadas e resumidamente apresentadas em poucas linhas em notas de rodapé intituladas “E também” ao fim dos blocos divididos temporalmente em décadas -da origem do cinema até 1999. Por sua vez, inspirado pelo trabalho pioneiro de pesquisadoras como Cari Beauchamp, Claire Johnston e Lynda Miles, Cousins articula 700 clips de filmes, em 32 línguas distintas, dirigidos por 183 cineastas.
“A ideia não é de consagrar uma contra-história paralela à ‘verdadeira’ história”, explica o redator-chefe Stéphane Delormé no editorial do Cahiers, “mas sim de reintegrar estas obras na história do cinema, que espera sempre para ser refeita”. Na apresentação de “Women Make Film”, Cousins fala pela voz de Swinton: “A maioria dos filmes foram dirigidos por homens. Muitos dos assim chamados ‘filmes clássicos’ foram dirigidos por homens. Por 13 décadas e nos 6 continentes cinematográficos, milhares de mulheres têm também dirigido filmes, alguns dos melhores filmes. Que filmes elas fizeram? Que técnicas usaram? O que podemos aprender sobre cinema delas?”
Divide-se em sete períodos o pioneiro esboço de um dicionário de realizadoras escrito pelos críticos (10) e críticas (8) convidados pelo Cahiers, incluindo contribuições especiais da programadora e produtora Marie-Pierre Duhamel e do ex-diretor da Cinemateca Francesa Dominique Paini. São a era muda/os anos 30; os anos 40/50; os anos 60; os anos 70; os anos 80 e os anos 90. O primeiro perfil é dedicado à francesa Alice Guy (Les Fredaines de Pierrete, 1900) e o último à portuguesa Tereza Villaverde (Os Mutantes, 1998). Duas cineastas brasileiras são celebradas: Ana Carolina (Mar de Rosas, 1977), com um verbete dos anos 1970, e Carmen Santos (Inconfidência Mineira, 1948), com uma breve nota no período 1940/50.
Cousins abre sua série pesquisando como as diretoras imprimem um tom e escolhem seus enquadramentos. Na segunda parte, estuda como encenam e editam seus filmes. Na terceira, trata de como filmam os corpos e a sexualidade, a casa e o trabalho. A forma como as realizadoras rodam melodramas e ficções científicas se encontra no quarto programa. Por fim, a série se encerra com um episódio dedicado à filmagem por elas do amor e da morte, da música e da dança.
Segundo Delormé, o levantamento do Cahiers quer “celebrar estas descobertas, ou reencontros, mas também interrogar, problematizar, esta história inacabada, em pedaços, por vezes trágica -uma história em ruínas”. Já para Thom Powers, “‘Women Make Film’ põe abaixo nossa compreensão da história cinematográfica”. Antes tarde do que nunca.