Por Amir Labaki
“Documentários se tornaram um insubstituível formato cultural de nossos tempos”, escreve o produtor e jornalista britânico Nick Fraser logo na introdução de “Say What Happened: A Story of Documentaries” (diga o que aconteceu: uma estória de documentários, Faber & Faber, 2019, 416 págs). Bem sabemos que não foi sempre assim e Fraser é um guia privilegiado para destrinchar essa mudança de status, tendo criado em 1997 e coordenado por quase duas décadas na BBC uma das mais prestigiadas faixas televisivas internacionais de documentários, Storyville.
O subtítulo já deixa claro, mas Fraser frisa algumas páginas mais tarde: “Não estou escrevendo aqui uma história do documentário”. Ainda assim, em sete de seus onze capítulos, “Say What Happened” convida o leitor a um sobrevoo –elegante e erudito mesmo que incompleto e anglocêntrico- ao desenvolvimento do cinema não-ficcional. Da contribuição brasileira, por exemplo, são citados apenas a de Alberto Cavalcanti à escola britânica dos anos 40 e “Ônibus 174” (2002), de José Padilha.
Em “Pioneiros e Propagandistas”, são apresentados alguns dos fundadores do gênero, de Robert Flaherty a Dziga Vertov, de Joris Ivens a Leni Riefenstahl e John Grierson. A absorção de narrativas não-ficcionais pela nascente televisão, com natural foco na experiência britânica, sobretudo em séries como “The Great War” (a grande guerra, 1964) da BBC, é recordada a seguir em “Na Caixa”.
“Toujour Vérité” celebra a escola gaulesa do “cinéma verité” desenvolvida a partir da revolução tecnológica de câmeras menores e gravadores portáteis de som sincronizado principalmente por Jean Rouch. O simultâneo movimento do Cinema Direto nos EUA, de Robert Drew Albert Maysles e D. A. Pennebaker, merece todo um capítulo (Os 1960s: Jeitos Americanos).
“Ultra-Reportagem” cobre um vasto período de mais de meio século, da década de 1950 aos dias de hoje, focando na presença de realizadores-repórteres simultaneamente atrás e diante das câmeras, do americano Edward R. Murrow em sua telessérie “See It Now” (1951-1958) até cineastas contemporâneos como o britânico Nick Broomfield, o americano Michael Moore e o dinamarquês Mads Brügger (O Caso Hammarskjöld, vencedor da competição internacional do É Tudo Verdade 2019).
Em “Gritadores”, Fraser destaca realizadores e documentários que contribuíram para alertar a consciência mundial sobre grandes crimes contra a humanidade, do Holocausto em “Shoah” (1986) de Claude Lanzmann ao massacre de bósnios-muçulmanos por paramilitares sérvios em 1995 em Srebrenica como reconstituído por Leslie Woodhead em “Um Grito do Túmulo” (1999). Já “Docquake” (“documoto”) revisita o “boom” da produção de documentários autorais visando o grande público das salas de cinema a partir de meados dos anos 1990, que Fraser lembra ter percebido ao assistir “Hoop Dreams” (1994), de Steve James.
Não por coincidência, pouco depois Nick Fraser emplacava Storyville na BBC, firmando-se como um dos mais talentosos e disputados “commissioning editors” do mercado audiovisual. Suas produções ou coproduções estenderam-se da África do Sul à Rússia, dos EUA à China, levando para festivais, salas e TVs mundo afora a marca de excelência de filmes como “Quarta-Feira” (1997), de Victor Kossakovsky, “Divórcio À Iraniana”, de Kim Longinotto e “Um Dia em Setembro” (1998), que valeu em 1998 o Oscar a Kevin Macdonald.
Desta experiência em Storyville, interrompida em 2016 para associar-se ao lançamento da plataforma britânica de streaming de documentários Yaddo, Nick Fraser destila as reflexões e anedotas dos dois primeiros (O Que É Verdadeiro? e Como Fazer um Doc) e dois últimos capítulos (Verdadeiramente Global e Rachaduras em Tudo). Algumas delas tive o prazer de conhecer em primeira mão em nosso convívio como jurados em 1996 no IDFA (Festival de Documentários de Amsterdã, a Cannes do gênero) e, entre 2003 e 2013, como membros do conselho do mesmo festival.
“A única regra é que não há regras”, sustenta Nick. “Ninguém pode dizer o que o documentário é ou deve ser”. Nos melhores, constata “uma sensação do acidental”, a marca pessoal de seu autor, uma “colisão criativa” quanto à forma originalmente planejada, e uma pitada ocasional de humor.
Nada surpreendente é sua visão irônica sobre a “celebrização do documentário”, com Leonardo DiCaprio surfando na onda, ou sua preocupação com a crise das emissoras de TV que abalou sensivelmente o modelo de financiamento vigente sobretudo na Europa nas últimas duas décadas. Tampouco lhe deixa indiferente o estado do mundo, ao atravessar “o período mais incerto” de que se lembra.
Ele não se furta, porém, de registrar o novo patamar de reconhecimento e popularidade alcançado pelos documentários. “Eles se tornaram parte de como vemos o mundo. Neste aspecto”, argumenta, “sua performance relativamente fraca nas bilheterias é menos importante. É possível ver documentários influenciando outros cineastas, assim como escritores e ativistas”. Na linha de frente para chegarmos aqui se encontra Nick Fraser.