Por Amir Labaki
Baseado no álbum em quadrinhos do espanhol Fermín Solís, “Buñuel no Labirinto das Tartarugas”, de Salvador Simó, participa na próxima semana da mostra competitiva de longas-metragens da 27a edição do Anima Mundi (17 a 21/7, Rio, 24 a 28/7, São Paulo). Não é à toa que já ostenta uma menção do júri no recente Festival de Annecy, a Cannes para o cinema de animação.
“Buñuel no Labirinto das Tartarugas” forma entre o incomum subgênero das biografias cinematográficas de longa-metragem em desenho animado 2D. Torna-se ainda mais raro ao encarar um dos mais fascinantes e idiossincráticos cineastas de todos os tempos, o eterno surrealista Luis Buñuel (1900-1983).
Felizmente a HQ de Solís e o filme de Simó escaparam da armadilha de achatar, numa narrativa do berço ao caixão, a atribulada vida e a complexa obra de Don Luis. O foco concentra-se sobre um período crucial para sua profissionalização como cineasta: o da rodagem de seu único documentário, “Las Hurdes –Terra Sem Pão” (1933).
Sua carreira iniciara-se de forma explosiva com dois dos pioneiros filmes do auge do movimento surrealista, o curta-metragem “Um Cão Andaluz” (1929), co-realizado com Salvador Dalí (1904-1989), e o longa “A Idade do Ouro” (1930), do qual Dalí pulou fora logo no início da roteirização. Ambos foram sucessos de escândalo mesmo no turbilhão cultural da Paris do entre-guerras.
Bancado pela mãe de Buñuel, “Um Cão Andaluz” fez tamanho barulho, com sua estrutura onírica e sua pegada erótica e anticlerical, que valeu a Buñuel um primeiro convite para visitar Hollywood, em 1930, episódio sem maiores consequências suprimido do argumento dos quadrinhos e da animação. Na mesma toada, estruturado em torno de um “amour fou”, “A Idade do Ouro” teve sessões tumultuadas por radicais de direita e quase levou à excomunhão de seu patrocinador, o visconde de Noailles, um dos mais ativos mecenas da vanguarda europeia da época.
De volta em 1931 de sua ociosa temporada americana, impossibilitado de contar com seus dois primeiros patrocinadores, Buñuel foi salvo da aposentadoria precoce por um sorriso da sorte. Encantado com uma tese acadêmica sobre as miseráveis condições de vida na região de Las Hurdes, no extremo oeste espanhol, planejou adaptá-la num documentário, dividindo a ideia com um amigo anarquista, Ramon Acin. Tão duro quanto o cineasta, o professor de desenho prometeu bancá-lo se ganhasse na loteria. Dois meses depois, dito e feito.
Buñuel abre o breve trecho de três páginas de seu livro de memórias, “Meu Último Suspiro” (escrito em parceria com o roteirista Jean-Claude Carrière) dedicado ao filme sintetizando o cenário: “Existia na Extremadura, entre Cáceres e Salamanca, uma região montanhosa desolada, onde só havia rochedos, charneca e cabras”. Com uma câmera emprestada pelo colega francês Yves Allégret, para lá partiu, para uma temporada de um mês de filmagens com dinheiro contado, ao lado de Ramon, do fotógrafo Elie Lotar e de Pierre Unik, como seu assistente.
Tendo por base um antigo convento carmelita, a equipe iniciou a rotina diária de despertar em plena madrugada para duas horas de viagem de carro e outras tantas a pé até os mais infernais dos 52 vilarejos da região. É ao aproximar-se de um deles que, dos comentários do quarteto, surge o título da HQ e do filme. Chegavam a uma vila perdida “no labirinto dos labirintos”, com casebres de improvisadas coberturas que lembravam “cascos de tartaruga”.
Como é possível conferir no YouTube, “Las Hurdes” revela aquela terra desolada, de famílias ignorantes e famélicas em convívio promíscuo com animais e insetos, a partir de uma estrutura em que colidem imagens à Goya e uma narração seca e direta. O subtítulo pelo qual ficou mais conhecido, “Terra Sem Pão”, é jornalístico: raramente pousavam naquelas mesas mesmo comidas tão básicas.
A biografia animada de Simó funciona exemplarmente como uma espécie de “making of” tardio de “Las Hurdes”, à moda do documentário anterior de um de seus produtores, Javier Espada, “Seguindo Nazarín” (2015, exibido no É Tudo Verdade), sobre as filmagens de um dos dramas prediletos do próprio Buñuel em sua fase mexicana. É certeira e didática a ênfase na encenações de algumas cenas bancadas por Buñuel, explícitas na montagem final como no plano em que a fumaça do tiro de um rifle precede a queda de uma cabra de uma montanha.
Paulo Emílio Salles Gomes mais uma vez foi ao ponto ao frisar que “o aprofundamento documentarista” de “Las Hurdes” “alcançava a surrealidade”, reafirmando assim a relação ambígua do grupo quanto ao realismo. “Buñuel no Labirinto das Tartarugas” conecta o mestre aragonês entre a juventude de “Um Cão Andaluz” e a maturidade de “Los Olvidados” (1950) e “Simão do Deserto” (1965).
Bem o definiu Glauber: “diante da opressão, do policialesco, do obscurantismo e da hipocrisia institucionalizada, Buñuel representa uma moral libertária, uma abertura de caminho, um constante processo de rebeldia clarificadora”. Nada mais urgente, portanto, do que o retorno a ele, como convida a cativante animação de Salvador Simó.