Por Amir Labaki
Pauline Kael (1919-2001) faria cem anos na próxima quarta-feira (19). Ninguém na história da crítica de cinema nos EUA foi mais influente e polêmica do que ela no quase um quarto de século (1967-1991) em que assinou a coluna “The Current Cinema” no semanário “The New Yorker”.
Apesar do temperamento polar em relação ao de Kael, coube ao austero e pudico editor William Shawn (1907-1992) a sacada de trazê-la para a revista. O convite veio logo depois de Shawn bancar a publicação pela “New Yorker” da resenha esfuziante dela sobre “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas” (1967), de Arthur Penn, que havia sido rejeitada pela concorrente “The New Republic”.
Um trecho do clássico parágrafo de abertura do texto, que cacifou o violento e sensual filme de gânsgsters de Penn contra a reação negativa inicial, sintetiza a originalíssima escrita crítica que consagrou Kael:
“’Bonnie e Clyde’ é o mais excitante filme americano americano (sic) desde ‘Sob O Domínio do Mal’ (1962). O público é sensível a ele. Nossa experiência enquanto o assistimos tem alguma ligação com o modo com que reagíamos a filmes na infância: com como nós viemos a amá-los e senti-los como nossos –não um arte que aprendemos a apreciar com o correr dos anos mas apenas e imediatamente nossos”.
O estilo de Kael veio romper com toda a tradição anterior. Suas longas sentenças eram informais e jazzísticas, plenas em som e fúria, em hipérboles e sinestesias, jorrando para o papel fluxos de consciência que buscavam afirmar uma leitura impressionista e inegavelmente pessoal, entre a análise, a confissão e o testemunho, tanto do filme em pauta quanto da experiência de assisti-lo junto a um grande público.
De um lado, ela foi pioneira em imprimir à crítica de cinema “uma voz coloquial”, como destacou a ensaista Camille Paglia em sua entrevista ao admirável documentário biográfico lançado em janeiro no Sundance Festival pelo diretor Rob Garver, “What She Said: The Art of Pauline Kael”. Por outro, ela defendia uma escrita que reagisse ao filme de maneira epidérmica, idealmente sem hierarquias entre gêneros, origens, estilos e assinaturas.
Californiana de uma família modesta de judeus poloneses, Kael gramou por um longo tempo e em vários bicos para alcançar o ápice profissional na “New Yorker”, note-se, já aos 48 anos. Erudita e cinéfila, já era mãe solteira de Gina James quando em 1953 começou a ganhar uns trocados também escrevendo sobre cinema. Ainda havia a driblar a remuneração modesta e o preconceito machista.
Publicada na revista City Lights da célebre livraria de São Francisco, sua primeira resenha descia o sarrafo em nada menos que “Luzes da Ribalta” (1952), de Charles Chaplin, entre outras coisas por seu tom “auto-piedoso”. Kael reconheceria não suportar o cinema de Chaplin, exceto os de sua fase inicial exclusivamente cômica.
Quase uma década mais tarde, em 1962, quem diria, ei-la desancando a adaptação para os EUA, pelo crítico Andrew Sarris (1928-2012), da “teoria do autor” desenvolvida na França sobretudo pelos “Cahiers du Cinéma”. Basta abrir qualquer dos 13 livros que publicou para encontrar, na massa heterogênea de influências, o fermento do método por ela atacado –assim como no comentário sobre Chaplin.
Muitos em seu panteão de cineastas prediletos formaram a geração seminal da chamada “nova onda americana” da virada dos anos 1960 para os 70 -como Jean-Luc Godard foi seu maior “darling” da “nouvelle vague”. As carreiras de Robert Altman, Francis Ford Coppola, Brian DePalma, Sam Peckinpah, Martin Scorsese e Steven Spielberg, entre outros, devem a ela o mais decisivo impulso crítico.
Na coluna oposta, Kael aplicou em 1971 um dos golpes mais injustos contra a reputação de Orson Welles (1915-1985). Preparado como introdução em livro do roteiro de “Cidadão Kane” (1942), seu ensaio “Criando Kane” cassava-lhe o direito ao crédito de co-roteirista, atribuindo a cinedramaturgia premiada com o Oscar quase exclusivamente ao esquecido Herman J. Mankiewicz (1897-1953). Peter Bogdanovich restauraria pouco depois a verdade mas o dano estava feito.
Com exceção do semestre sabático em 1979/1980 em que tentou a sorte em Hollywood apoiada por Warren Beatty, Kael iluminou ininterruptamente as páginas da “New Yorker”, sempre escrevendo a mão, até decidir se aposentar em 1991. Imagine-se a batalha que, há uma década, ela já enfrentava contra a doença de Parkinson.
Ao amigo Francis Davis, numa de suas últimas entrevistas (Afterglow, DaCapo Press, 2001) ela desabafou: “O que se vê é uma indústria de cinema em decadência e a decadência só piora e piora”. Mal sabia ela como rapidamente se erodiria também a experiência cinematográfica da comunidade anônima nas salas escuras.
A arte de Pauline Kael nascia com um olho na grande tela, outro nas poltronas ao redor. A mulher da cidade-cinema saiu de cena bem a tempo.