Por Amir Labaki
Depois de quase uma década e meia, Martin Scorsese retoma na próxima quarta (12) sua versão audiovisual da saga musical e biográfica de Bob Dylan. É quando estreia na Netflix, e em alguns cinemas nos EUA, “Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story”, a sequência de “No Direction Home: Bob Dylan” (2005). Entre um e outro, ambos receberam os prêmios máximos de suas carreiras: em 2007, o Oscar de melhor diretor para Scorsese por “Os Infiltrados”; em 2016, o Nobel de Literatura para Dylan.
Premiação à parte, “Os Infiltrados” está longe de ser o melhor longa-metragem ficcional de Scorsese. Já nenhum documentário que realizou desde então, musical ou não, supera “No Direction Home”. Resta torcer que “Rolling Thunder Revue” recoloque a barra lá no alto, escrevendo esta coluna antes de o filme estar acessível para a imprensa.
O trailer lançado no início da semana anuncia uma estrutura semelhante: extenso material de arquivo, registros inéditos de bastidores, novas entrevistas originais com Bob Dylan e companheiros de viagem, como Joan Baez e Sam Shepard (1943-2017). Em pouco menos de 3 horas e meia, “No Direction Home” resumia a formação musical de Dylan, de cantor folk a pioneiro ídolo rock, estendendo-se até o tumultuado ano de 1966, marcado pelo susto de uma trombada de moto na Suécia.
“Depois do acidente de moto, Bob Dylan continuou a escrever e gravar músicas”, anunciava seu letreiro final. “Ele não fez nenhuma outra turnê durante oito anos”. Exatamente neste ponto “Rolling Thunder Revue” retoma-lhe a carreira.
No outono americano de 1975 Bob Dylan decidiu voltar a cair na estrada. Convidou um grupo carimbado de colegas para acompanhá-lo, entre os quais Joan Baez, Joni Mitchell, Patti Smith e o poeta Allen Ginsberg (1926-1997). Contra as propostas de tocar em espaços para ao menos 20 mil espectadores, optou por pequenos teatros e estádios pelo país. “A turnê não foi um sucesso”, reconhece o próprio Dylan para Scorsese. “Se você julga sucesso em termos financeiros”.
Com um pouco menos de 2 horas e meia de duração, “Rolling Thunder Revue” alterna-se entre as performances nos palcos, anedotas de bastidores e viagens e registros do mal-estar americano na ressaca de Watergate e do fim da guerra do Vietnã. Scorsese sabiamente repete aqui sua parceria com David Tedeschi, o extraordinário editor de “No Direction Home”, trabalhando desta vez ao lado de Damian Rodriguez. Tedeschi está para sua obra documental como a lendária Thelma Schoonmaker para seus filmes de ficção, a ponto de Scorsese ter dividido com ele os créditos de direção de outro de seus mais recentes documentários, “The New York Review of Books: Uma Reflexão de 50 Anos” (2014).
Como atesta o conjunto de sua obra, independentemente do gênero, a formação musical de Scorsese corre ombro a ombro com sua extraordinária cinefilia. Não à toa, música e cinema pautam seus principais documentários.
Seu amor aos filmes catalisou três de suas obras não-ficcionais mais abertamente autobiográficas: as séries “Uma Viagem Pelo Cinema Americano” (1995) e “A Minha Viagem a Itália” (1999) e o média-metragem “Carta para Elia” (2010), sua homenagem póstuma ao cineasta Elia Kazan (1909-2003). No primeiro grupo, além do díptico sobre Bob Dylan, destacam-se “O Último Concerto de Rock” (1978), sobre o show de despedida de The Band; “Feel Like Going Home” (2003), seu episódio para a telessérie “Blues”, focando nas origens africanas do ritmo; “Shine a Light” (2008), seu filme-concerto com o Rolling Stones; e “George Harrison: Living in the Material World” (2011).
Este engajamento na história do documentário musical data do início de sua carreira. Há exatos 50 anos, diretor de uns poucos curtas e apenas um longa ficcional independente (Quem Bate À Minha Porta?, 1957), o jovem Scorsese acompanhou, como um dos co-editores, a trupe formada pelo diretor Michael Wadleigh para rodar um documentário tão improvisado quanto o evento que retratavam: nada menos que o festival de música de Woodstock, talvez o canto de cisne da contracultura americana dos anos 1960. “Woodstock” (1970), o filme, venceria nada menos que o Oscar de melhor documentário daquele ano.
A adrenalina daquela filmagem à quente marcaria toda a primeira fase de produções documentais de Scorsese, que se estende até 1978, quando lançou “O Último Concerto de Rock” e “American Boy: A Profile of Steven Prince”, um ator que dirigira em “Motorista de Táxi” (1976). Deste período é ainda o mais original de seus documentários, o média-metragem “Italianamerican” (Ítalo-Americano, 1974), um mergulho amoroso na história de seus pais, Catherine (1912-1997) e Charles Scorsese (1913-1993).
Entre 1978 e 1995, Scorsese deu um tempo em sua produção não-ficcional, dedicando-se talvez ao período áureo de seu cinema de ficção, de “Touro Indomável” (1980) a “Cassino” (1995). Ao voltar ao documentário com “Uma Viagem ao Cinema Americano”, ele retoma uma vereda profissional da qual não mais se afastaria, ainda que em novo registro: o de documentários histórico-culturais, fundamentalmente ancorados em arquivos e entrevistas.
Desta fase, “No Direction Home” é sua obra-prima. A ver agora se o posto será dividido com “Rolling Thunder Revue”.