Por Amir Labaki
Em tempos de fogo cruzado sobre o Supremo Tribunal Federal brasileiro, foi mais que oportuna a estreia na semana passada de “A Juíza” em nosso circuito comercial, mesmo com cerca de um ano de atraso frente ao lançamento original nos EUA. No título original, bastaram as iniciais “RBG” para apresentar o documentário biográfico de Ruth Bader Ginsburg dirigido por Betsy West e Julie Cohen.
Aos 86 anos, RBG é apenas a segunda mulher a servir na Suprema Corte dos EUA. Indicada em 1993 pelo então presidente democrata Bill Clinton, foi confirmada por nada menos que 96 votos contra 3 por um Senado muito menos polarizado segundo as linhas partidárias do que o da última década.
Virtualmente desconhecida no Brasil, a juíza Ginsburg alcançou status de ídolo pop americano, mesmo antes da atual segunda onda feminista, depois da pioneira de fins dos anos 60. Em pouco mais de um quarto de século de atuação na mais alta instância do Poder Judiciário dos EUA, RBG paulatinamente firmou-se como uma das raras vozes progressistas diante da crescente guinada conservadora da formação da Suprema Corte, dada a hegemonia republicana conquistada no Senado durante a maior parte deste período.
Como frisa o documentário, sua popularidade edificou-se quase à revelia da personalidade recatada de RBG, ao menos na esfera privada. Para ela contribuíram a competência e a tenacidade de sua atuação em favor da efetiva equiparação entre homens e mulheres em todos os setores da sociedade americana, defendendo suas posições, ainda quando derrotada, por meio da divulgação de seus votos dissidentes.
“A Juíza” reconstitui-lhe a pioneira trajetória usando como esqueleto dramático seu discurso autobiográfico introdutório, em 1993, para a tradicional sabatina da indicação diante de uma comissão do Senado. As diretoras vão complementando-o com a tradicional riqueza de materiais de arquivo nos EUA, públicos e privados, fotográficos como audiovisuais, e com entrevistas inéditas com seus filhos e netos, amigas de juventude, antigos clientes e colegas de tribunais, assim como marcantes personalidades públicas, como a escritora e líder feminista Gloria Steinem e o ex-presidente Clinton. Até mesmo o veterano e ultraconservador senador republicano Orrin Hatch, um dos raros sobreviventes ainda em atividade da comissão que a sabatinou, concedeu-lhes um depoimento elogioso, a contrapelo de seus posicionamentos radicalmente dissonantes.
Tudo isso não resultaria um filme tão cativante não fosse a direta participação da própria RBG. Esta cooperação abriu uma brecha sob seu manto de privacidade. De duas maneiras.
Primeira: suas entrevistas pontuam com o calor das memórias a formalidade de sua fala de auto-apresentação aos senadores. Segunda: RBG deixa-se filmar mesmo em situações cotidianas.
Uma aula de ginástica, uma palestra para jovens alunos, a visita a uma exposição, idas à ópera (seu grande hobby), como espectadora e até numa pontual participação especial. Numa concessão especial, pois seus filhos deixam claro que TV para ela resume-se a telejornais, Ginsburg diverte-se vendo pela primeira vez Kate McKinnon parodiá-la no humorístico “Saturday Night Live”.
“A Juíza” contrapõe fragilidade física e recato comportamental à coragem de sua desbravadora atuação -feminista “avant la lettre”- e à rara força de seu legado. Nascida no Brooklyn nova-iorquino numa família de imigrantes judeus, para estabelecer-se como advogada, e depois juíza, Ruth enfrentou a mesma tradição discriminatória que combateu em casos nos tribunais.
Quando se formou nos anos 50, havia apenas 2% de mulheres entre os estudantes de Direito mesmo nas grandes universidades nos EUA (Cornell, Harvard, Columbia). Um carismático colega de faculdade, Martin D. Ginsburg (1932-2010), tornou-se seu companheiro de vida e apoiador essencial de sua batalha profissional.
O poder intelectual e a autoridade jurídica de RBG são eficientemente demonstrados por alguns resumos de casos durante o filme. São tão impressionantes, pelo evidente caráter extemporâneo das práticas a que se opõem, que a eles se dedica todo um novo documentário, “Ruth: Justice Ginsburg in Her Own Words” de Freida Lee Mock, programado para junho no AFI Docs de Washington.
Sim, Hollywood tampouco resistiu à personagem. No ano passado, Felicity Jones (A Teoria de Tudo) a interpretou sob a direção de Mimi Leder em “Suprema” (On The Basis of Sex), que não exatamente empolgou ao ser lançado no final do ano nos EUA e em março por aqui.
“A Juíza”, por sua vez, conquistou o posto de 24o documentário de maior sucesso nas bilheterias americanas em todos os tempos, com US$ 14 milhões em ingressos, e foi indicado ao Oscar em duas categorias, longa documental e canção. RBG é maior do que qualquer ficção.