Por Amir Labaki
Cinquenta e seis anos antes de receber a Palma de Ouro pela carreira no corrente 72o Festival de Cannes, cuja premiação oficial acontece neste sábado (25), Alain Delon cruzava a Croisette como jovem auxiliar do veterano Jean Gabin (1904-1976) para um assalto milionário num cassino em “Gângsteres de Casaca” (1963), de Henri Verneuil (1920-2002), que acaba de sair aqui em versão restaurada na segunda caixa de DVDs “Filme Noir Francês” da Versátil. Somam-se agora doze títulos que comprovam como, no período entre meados dos anos 1950 e começo dos 70, o cinema policial produzido na França nada ficou a dever ao americano, cujo pico aconteceu na década imediatamente anterior.A escola clássica do filme noir hollywoodiano, amadurecida no imediato pós-guerra e sob a sombra do macarthismo, dispensa maiores apresentações, sob as assinaturas de mestres como Jules Dassin, Howard Hawks, John Huston, Anthony Mann, Jacques Tourneur, Edgar G. Ulmer e Billy Wilder, entre muitos outros.
Quase uma centena de seus principais títulos representam um autêntico festival nas 13 caixas de DVDs já lançados pela mesma distribuidora.
As duas coleções de policiais gauleses chamam atenção agora para o injusto quase esquecimento desta produção fora do círculo de cinéfilos na própria França. Foram incluídos filmes realizados entre 1953 e 1979, portanto um pouco antes e também um pouco depois de seu auge de excelência, como demonstram o mais antigo, “Brotinho Venenoso” de Bernard Borderie (1924-1978), e o mais recente, “Série Negra” de Alain Corneau (1943-2010).
A inclusão do primeiro justifica-se por inaugurar a série de aventuras em que Eddie Constantine (1913-1993) interpreta o detetive Lemmy Caution, celebrado não uma, mas duas vezes por filmes de Jean-Luc Godard: o distópico “Alphaville” (1965) e o reflexivo “Alemanha Ano 90” (1991). Já o segundo sustenta-se talvez unicamente por propiciar um dos últimos papéis a um dos mais carismáticos e talentosos atores franceses revelados nos anos 1970, Patrick Dewaere (1947-1982), que tragicamente encurtou a própria trajetória aos 35 anos.
Um em cada caixa, é obrigatório conferir dois dos três filmes que anunciaram a renovação do cinema policial francês em meados dos anos 50 (o terceiro, “Rififi”, de 1954, dirigido pelo então exilado na França Jules Dassin, está na quarta coleção “Filme Noir”). Dirigido pelo experiente Jacques Becker (1906-1960), “Grisbi, Ouro Maldito” (Touchez Pas Au Grisbi, 1954) relançou a carreira do grande astro francês do pré-guerra, Jean Gabin, no papel de um elegante mas envelhecido gângster que tem o butim de seu último golpe cobiçado por uma gangue rival.
Outro veterano assaltante, interpretado pelo muito menos célebre Roger Duchesne (1906-1996), tenta um último golpe em “Bob, O Jogador” (Bob, Le Flambeur, 1955), no filme inaugural do sublime ciclo de policiais que consagrou a partir de então Jean-Pierre Melville (1917-1973). “Grisbi” e “Bob” estabeleceram algumas das características marcantes da onda que iniciaram: o foco sobre a camaradagem masculina, com mínima participação feminina; o entrecho em torno do golpe definitivo, à moda de “O Segredo das Jóias” (1950) de John Huston; o tom semidocumental ditado pela ênfase nas filmagens em locações (nos dois casos, por exemplo, a Paris boêmia de Montmartre e Pigalle).
Apenas Becker e Melville, dentre os cineastas daquela era de ouro do “polar”, conquistaram vagas no renovado panteão de “autores” franceses estabelecido pela escola crítica então hegemônica na França: a ditada desde os Cahiers du Cinéma por Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer e François Truffaut. Os demais eram considerados no máximo como competentes artesões de um gênero imensamente popular –logo, secundário. Não surpreende que, quando aqueles críticos passaram à realização sob a alcunha genérica de “Nouvelle Vague”, apenas Chabrol tenha se dedicado com sucesso a filmes policiais.
Apoiado pela revisita aos arquivos fílmicos impulsionada pela onda de restauro digital do patrimônio cinematográfico, é curiosamente um cineasta da geração logo posterior à da “Nouvelle Vague”, Bertrand Tavernier, ex-critico e atual presidente do Instituto Lumière de Lyon, o principal responsável pela revalorização deste continente submerso de obras-primas esquecidas do cinema policial francês. Confira como nada menos pode ser dito de “Sedução Fatal” (1956), de Julien Duvivier, e “Vício Maldito” (1958), de Gilles Grangier, ambos com performances soberbas de Gabin, ou de “Como Fera Encurralada” (1960), de Claude Sautet, e “Sinfonia para um Massacre” (1963), de Jacques Deray.
Por maiores que sejam as resistências à filmografia irregular de Henri Verneuil (A 25a Hora), a parceria/duelo Gabin/Delon catalisada por ele em “Gângsteres de Casaca” tampouco fica atrás. Que seu cenário seja Cannes, é como uma homenagem involuntária.