Por Amir Labaki
Enquanto a turma da pipoca discute se vai rever “Vingadores: Ultimato” em IMAX ou 3D, após o lançamento histórico com mais de US$ 1,2 bilhão nas bilheterias mundo afora apenas no primeiro final de semana, o mercado do cinema de arte prepara as malas para o início daqui a pouco mais de uma semana do 72o. Festival de Cinema de Cannes. Thierry Frémaux, o “delegado-geral” do festival, de fato seu diretor artístico, pisca contudo para o outro lado, escalando para a sessão de abertura de 14 de maio o filme de zumbis de Jim Jarmusch, “Os Mortos Não Morrem”, protagonizado por Adam Driver, Bill Murray e Chloe Sevigny.
A escolha insere-se na ampliação da presença em Cannes do cinema de gêneros implementada por Frémaux, sinalizada também, por exemplo, na seleção de “Bacurau”, dos brasileiros Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, para a disputa da Palma de Ouro deste ano. A distinção ao terror de Jarmusch também responde à necessidade de Frémaux repactuar a presença hollywoodiana no festival, estremecida nos últimos casos com o braço-de-ferro mantido com a distribuidora por streaming Netflix.
Pelo segundo ano consecutivo produções originais da Netflix ficam fora de Cannes. O conselho do festival, no qual tem assento representantes de distribuidores e exibidores franceses, reagiu à política da Netflix de minimizar a distribuição prioritária em salas de cinema em favor de estreias diretas em sua plataforma de streaming, vetando a participação de suas produções da competição oficial. Em resposta, a Netflix decidiu simplesmente “pular” o festival, reservando suas estreias cinematográficas de maior peso para os eventos de peso do segundo semestre, notadamente a Mostra Internacional de Cinema de Veneza, vencida no último ano por “Roma”, de Alfonso Cuarón –da Netflix.
Se nenhum progresso alterou o impasse Cannes/Netflix neste ano, foi com inegável alívio que as distribuidoras de streaming receberam na última semana a decisão do conselho da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em manter inalteradas as regras visando à habilitação dos filmes para a disputa do Oscar. Continua valendo a regra que apenas exige que uma produção fique em cartaz no circuito comercial de Los Angeles por ao menos sete dias para qualificar-se para disputa, com exceções para algumas categorias, com a de documentários de longa-metragem.
A anunciada pressão de ninguém menos que Steven Spielberg para a mudança das regras afinal não se confirmou. O diretor de “Caçadores da Arca Perdida” sequer participou da reunião do conselho da Academia e declarações matizando seu posicionamento tornaram-se públicas. O presidente da Academia, John Bailey, soltou uma nota, por seu turno, frisando o apoio “à experiência em salas” e anunciando que o conselho irá “estudar mais profundamente as profundas mudanças que estão ocorrendo em nossa indústria".
Em Cannes, Thierry Frémaux não se furtou de fazer um gesto conciliatório frente às distribuidoras de streaming, sinalizando um distanciamento do festival de qualquer restrição cinejurássica às novas realidades do mercado. Serão exibidos fora de concurso dois episódios inéditos da nova série da Amazon Prime Video “Too Old To Die Young – North of Hollywood, West of Hell” (Velho Demais Para Morrer Jovem – Norte de Hollywood, Oeste do Inferno”, do cineasta dinamarquês Nicolas Winding Refn, que concorreu à Palma de Ouro com seus três últimos filmes (Drive, Apenas Deis Perdoa e Demônio de Neon).
A seleção americana para a principal mostra competitiva de Cannes reafirma a opção preferencial por realizadores independentes, somando-se a Jarmusch o já vitorioso Terrence Mallick, com o drama sobre a Segunda Guerra “A Hidden Life” (Uma Vida Oculta), e o estreante em concurso Ira Sachs, com o drama “Frankie”, uma co-produção com a França estrelada por Isabelle Huppert, Marisa Tomei e Greg Kinnear.
A incontornável representação nacional francesa também emplacou três produções para concorrer à Palma de Ouro. Depois de ter aberto o festival em 2017 com “Os Fantasmas de Ismael”, Arnaud Desplechin retorna à disputa com “Roubaix, Une Lumière” (Roubaix, Uma Luz). Duas jovens cineastas debutam no seleto círculo principal: Cécile Sciamma, com “Portrait de Une Jeune Fille en Feu” (Retrato de Uma Jovem em Fogo), e Justine Triet, com “Sybil”. (PS. Após o fechamento da edição impressa desta coluna, dois novos títulos de cineastas já vencedores da Palma de Ouro foram anunciados na disputa: o americano “Era Uma Vez em Hollywood”, de Quentin Tarantino, e o francês “Maktoub, Meu Amor: Intermezzo”, de Abdellatif Kechice. Nada de muito novo, portanto).
A celebração gaulesa completa-se com a entrega de uma Palma de Ouro honorária ao ator Alain Delon (O Sol Por Testemunha; O Samurai), hoje aos 83 anos e há uma década distante das telas. O mais belo de tudo é, porém, a homenagem à recém-falecida Agnès Varda (1928-2019) no deslumbrante cartaz deste ano. Você também pode celebrá-la por aqui, conferindo a estreia na próxima semana de seu filme-testamento, “Varda por Agnès”, uma delicada e generosa última lição de cinema.