Por Amir Labaki
A antiga ladainha de que documentário é tudo igual sofre novo rude golpe frente a uma visão geral das premiações oficiais da 24a edição do É Tudo Verdade, anunciadas no último dia 14. São marcadamente distintas as estratégias narrativas e estruturas formais assumidas pelos realizadores das obras destacadas.
“Cine Marrocos”, de Ricardo Calil, venceu a competição brasileira de longas-metragens, em decisão do júri formado pelo diretor Cristiano Burlan, pela pesquisadora Sheila Schvarzman e pelo documentarista Vladimir Carvalho. Em seu primeiro filme solo, Calil imergiu com uma equipe de múltiplas origens para realizar um workshop de teatro e cinema com membros de uma ocupação de sem-teto numa tradicional sala de cinema desativada no centro de São Paulo.
O ovo de Colombo foi a escolha da mediação metacinematográfica por meio dos ensaios e registros audiovisuais com o duplo objetivo de, primeiro, estreitar laços entre os visitantes e os moradores e, segundo, fixar a identidade destes últimos, rompendo o estigma de ocupantes indiferenciados. Entre depoimentos com os participantes que habitam o cinema e ensaios e regravações de cenas de filmes clássicos, com destaque para “Crepúsculos dos Deuses” (1950) de Billy Wilder, “Cine Marrocos” insufla humanidade e arte onde socialmente enxerga-se apenas transgressão e conflito, aproximando o espectador de apenas um dos incontáveis cenários da crise habitacional brasileira.
Também o vencedor da competição internacional de documentários de longa-metragem lança mão de recursos ficcionais para estruturar sua narrativa. O dinamarquês Mads Brügger empresta o figurino de roupas claras e chapéu das tradicionais autoridades coloniais europeias nos trópicos para investigar na Zâmbia a até hoje obscura queda do avião que vitimou na região, em setembro de 1961, o então secretário-geral da ONU, o diplomata sueco Dag Hammarskjöld (1905-61).
Premiado pelo júri composto pela cineasta alemã Cordelia Dvorák, pelo diretor americano Nicolas Rossier e pelo roteirista e compositor brasileiro Paulo Mendonça, “O Caso Hammarskjöld” (Cold Case Hammarskjöld, 2019) escora-se em seu dispositivo paródico para desconstruir as várias hipóteses para a morte do arrojado diplomata, de fatídico acidente a derrubada intencional, e, em evolução assumidamente inesperada, descortinar outra vereda investigativa. “O Caso Hammarskjöld” torna-se assim um novo modelo de documentário que se reinventa em pleno processo de feitura, com salutar (e rara) dose de humor na não-ficção filmada.
Mais tradicional em sua forma, “Piazzolla – Os Anos do Tubarão” (2018), co-produção franco-argentina dirigida por Daniel Rosenfeld, saiu vitorioso na disputa latino-americana ao radiografar como nunca antes a trajetória do compositor e bandoneonista que reinventou o tango. A partir de gravações sonoras autobiográficas inéditas colhidas por sua filha, Rosenfeld reconstitui a saga artística e pessoal de Astor Piazzolla (1921-1992), com ênfase na incompreensão que lhe marcou a evolução musical, pontuada por encontros decisivos com Carlos Gardel, Anibal Troilo e Nadia Boulanger.
Complemento essencial para as entrevistas familiares, vale destacar a contribuição para “Os Anos do Tubarão” dos registros feitos pelo documentarista argentino radicado no Brasil Mauricio Berú, diretor de uma série de documentários sobre a história do tango e de “Piazzolla em Buenos Aires” (2005). O filme de Rosenfeld soma-se agora à obra de Berú como referência inescapável à arte do compositor de “Adiós Nonino”.
Um dos mais originais realizadores brasileiros, Carlos Adriano, venceu pela primeira vez a disputa de curtas nacionais do É Tudo Verdade com “Sem Título #5: A Rotina Terá Seu Enquanto”. Trabalhando como é habitual no registro do cinema de “found footage”, que se apropria e ressignifica imagens de arquivo fílmico, Adriano dá sequência à sua série autocinebiográfica revisitando o clássico “A Rotina Tem Seu Encanto” (1962), do mestre japonês Yasujiro Ozu. Com requinte “mondrianesco”, como certeiramente notado pelo júri, é um dos pontos altos de exatas três décadas de exuberante cinema.
Por fim, o chileno “Nove Cinco” (Nueve Cinco, 2018), de Tomás Arcos, triunfou na disputa de curtas internacionais, relembrando o impacto sobre uma agora simpática anciã do terremoto devastador que em 1960 atingiu a cidade de Valdívia. A voz da memória e arquivos de época bastam para ressuscitar um episódio de genuíno horror. Às vezes é simples assim.