Por Amir Labaki
Agnès Varda (1928-2019), que nos deixou aos 90 anos no último dia 28, gostava de abordar em seus filmes a própria prática cinematográfica. Fossem eles em ficção, como ao celebrar a memória de seu marido, Jacques Demy (1931-1990), em “Jacquot de Nantes” (1991) ou o centenário do cinema em “As Cento e Uma Noites de Simon Cinéma” (1995), ou em documentários, como nos que dedicou à obra de Demy (As Garotas Têm 25 Anos, 1993, O Universo de Jacques Demy, 1995) ou seus autodocumentários, dois de seus três longas-metragens de despedida, “As Praias de Agnès” (2008) e “Varda Par Agnès” (2019), lançado este no recente Festival de Berlim e com distribuição brasileira nos próximos meses pela Imovision.
Esta vertente reflexiva do cinema de Varda poderia ocupar toda esta coluna mas, em pleno desenvolvimento da 24a. edição do É Tudo Verdade, acho pertinente destacar a forte representação de documentários sobre cinema no festival em andamento. Creio que a diretora de “Os Catadores e Eu” (2000) apreciaria o vigor deste subgênero na presente safra.
Filmes sobre cinema marcam todas as mostras do É Tudo Verdade 2019, competitivas ou não, com exceção da disputa latino-americana. Não me cabe debater os títulos em disputa, mas lá estão “Cinema Marrocos”, de Ricardo Calil, entre os longas brasileiros, “Testemunhas de Putin”, de Vitaly Mansky, e “Ziva Postec –A Montadora do Filme ‘Shoah’”, de Catherine Hébert, entre os longas internacionais, “Sem Título # 5: A Rotina Terá Seu Encanto”, de Carlos Adriano, nos curtas-metragens nacionais, e “2001 – Faíscas na Escuridão”, de Pedro González Bermúdez, entre os estrangeiros.
Fora de concurso, a tendência se faz representar marcadamente em três destaques: “Fotografação”, de Lauro Escorel, “Carta a Theo”, de Elodie Lélu, e “Marceline. Uma Mulher. Um Século”, de Cordelia Dvorák. Os dois últimos podem ser assistidos tanto em sala como conferidos na programação on-line do festival no Spcine Play. Com exibição exclusiva no site do Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br), vale conferir a seleção de quatro produções sobre cinema que marcaram a história recente do festival: “Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília”, de Andrea Prattes e Cleisson Vidal, “O Galante Rei da Boca”, de Alessandro Gamo e Luís Rocha Melo, “Histórias Cruzadas”, de Alice de Andrade, e “Tudo Por Amor ao Cinema”, de Aurélio Michiles.
Examinando as três obras inéditas, impõe-se de saída a diversidade de abordagens. “Fotografação”, como já indica o próprio título, parte da fotografia para chegar ao cinema. “Carta a Theo” origina-se da amizade entre a diretora e o mestre grego Theo Angelopoulos (1936-2012) para transcender o retrato fílmico. “Marceline”, como já tratei nesta coluna, é um registro à quente do cotidiano dos últimos anos da cineasta e escritora Marceline Loridan-Ivens (1928-2018).
Dois vetores dialogam no primeiro documentário de longa-metragem de Lauro Escorel: a história da fotografia brasileira, dos pioneiros ao digital, e a influência desta nas estratégias estéticas abraçadas por Lauro em sua arquipremiada atividade como diretor de fotografia (São Bernardo; O Rei da Noite; Bye Bye Brasil; O Xangô de Baker Street). “Fotografação” é assim como que um desenvolvimento híbrido de duas das obras anteriores de Escorel como diretor bissexto: o longa ficcional “Sonho Sem Fim” (1985), sobre o pioneiro do cinema gaúcho, Eduardo Abelim (1900-1984), e o curta documental “Improvável Encontro” (2016), sobre as vidas e as obras de dois pioneiros da moderna fotografia brasileira, José Medeiros (1921- 1990) e Thomas Farkaz (1924-2011), não por coincidência também eles artistas anfíbios, com essenciais carreiras também em cinema.
Assim como Escorel em “Fotografação”, Lélu abraça o registro ensaístico em “Carta a Theo”, mas o faz sob o signo de Chris Marker (1921-2012). A partir também de um texto narrado em primeira pessoa, Elodie Lélu equilibra-se entre o privado e o público, entre o pessoal e o social. “Carta a Theo” tanto rememora o extraordinário cinema de Angelopoulos (O Passo Suspenso da Cegonha, 1991) quanto o impacto devastador de duas crises, a econômica de 2008 e a da imigração ainda em desenvolvimento, sobre o tecido social da Grécia.
Angelopoulos buscava tomar o pulso desta Grécia turbulenta e ferida em “O Outro Mar”, o filme que preparava quando um atropelamento de moto o vitimou. Nada menor foi até o fim a inquietude de Marceline, como flagrou Dvorák. Seu registro é mais direto e biográfico do que o de Lélu –e igualmente amoroso. Como amorosa foi sempre a câmera de Agnès Varda.