Por Amir Labaki
Raras vezes em sua história a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood realizou, em sua festa anual para a entrega do Oscar, uma cerimônia e uma premiação tão harmônicas e coerentes como na noite do último domingo. Escolhido melhor filme nesta 91a edição, “Green Book – O Guia”, de Peter Farrelly, sintetiza em sua fatura clássica e construção suave a mensagem humanística e includente, antirracista e anti-homofóbica, reafirmada a cada passo da celebração.
A renúncia à formula tradicional de um apresentador único permitiu uma reinvenção do roteiro da cerimônia. Do lado do espetáculo, ganhou agilidade. Na dimensão sócio-política, abriu-se para a diversidade étnica e geracional.
Para as apresentações, sucederam-se pares multiétnicos e reverteram-se expectativas. A tenista afro-americana Serena Williams, por exemplo, introduziu a indicação a melhor filme de “Nasce Uma Estrela”, de Bradley Cooper. A atriz, cantora e diretora de origem judaico-americana Barbra Streisand, por sua vez, amadrinhou a indicação também a melhor filme de “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee.
Coerentemente, também alternaram-se para receber seus prêmios no palco do Dolby Theater talentos das mais diversas origens e raízes, afro-americanos sobretudo, mas americanos brancos, asiáticos, latino-americanos, ítalo-americanos e nórdicos. A Academia detonou o muro de Trump.
Apenas três anos após o movimento #OscarSoWhite, um número ímpar de negros saiu vencedor. Nada menos que quatro produções ancoradas no universo afro-americano e em questões referentes à discriminação contra os negros saíram como ao menos uma estatueta.
“Green Book”, que revisita a chaga do segregacionismo na região sul dos Estados Unidos dos anos 1960, ficou com o Oscar de melhor roteiro original e melhor ator coadjuvante (Mahersala Ali), além do prêmio principal. O blockbuster HQ “Pantera Negra”, de Ryan Coogler, levou nada menos que três prêmios (direção de arte, figurino e trilha original).
Um esfuziante Spike Lee venceu finalmente seu primeiro Oscar como um dos co-roteiristas da adaptação de “Infiltrado na Klan”. E Regina King foi escolhida como melhor atriz coadjuvante por “Se A Rua Beale Falasse”, de Barry Jenkins.
Em plena escalada do discurso anti-hispânico do presidente Donald Trump, o tocante drama realista “Roma”, de Alfonso Cuarón, fez sim história, ainda que não em toda sua dimensão potencial. “Roma” se tornou a primeira produção mexicana a vencer o Oscar de melhor filme estrangeiro, uma definição finamente ironizada por Cuarón em seu discurso de aceitação. Batido na disputa de melhor filme, não concretizou o duplo feito de vencer pela primeira vez as duas disputas de melhor produção e de conquistar o primeiro Oscar principal para a Netflix.
Mas Cuarón recebeu ainda seu segundo Oscar de melhor diretor (vencera por “Gravidade”, em 2013) e o primeiro de melhor direção de fotografia, que soma agora entre seus prêmios técnicos ao de melhor edição também por “Gravidade”. Cinco dos seis últimos vitoriosos como melhor diretor são cineastas mexicanos (Cuarón, duas vezes, Alejandro G. Iñárritu, também, 2014 e 2015, e Guillermo del Toro, 2017).
Com mais do que o esperado, e mesmo merecido, “Bohemian Rhapsody”, contando a história da banda Queen e de seu vocalista Freddie Mercury (1946-1991), triunfou em quatro categorias e sagrou-se o campeão númerico da noite. No papel de Mercury, Rami Malek venceu como melhor ator, somando-se ainda os Oscars de melhor edição (talvez o mais discutível), edição de som e mixagem de som.
A eletrizante performance da britânica Olivia Colman como a rainha Anne na Inglaterra do começo do século 18 valeu-lhe o prêmio de melhor atriz, derrotando Glenn Close (A Esposa) em sua sétima infrutífera indicação. Foi o único triunfo nas dez categorias para o qual foi indicado o corrosivo “A Favorita” do grego Yorgos Lanthimos. Também apenas um prêmio receberam “Nasce Uma Estrela” (melhor canção, de co-autoria de Lady Gaga) e o provocante “Vice”, de Adam McCay (melhor maquiagem).
Num Oscar tão engajado, não deixa de ser paradoxal que uma das principais notas dissonantes tenha se dado na premiação do melhor documentário de longa-metragem. Venceu o concorrente de mais baixa temperatura social, “Free Solo” de Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, que a National Geographic estreia nas telinhas por aqui no próximo dia 9.
Soou igualmente estranha uma ausência na tradicional homenagem fúnebre “In Memoriam”, que merecidamente lembrou a despedida de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018). Faltou ninguém menos que Jonas Mekas (1922-2019). Em sua obra de imigrante acolhido pelo sonho americano pulsa a própria essência do espírito do Oscar deste ano. Há rimas que não se recuperam jamais.