Por Amir Labaki
Dirigido por Wim Wenders, “Papa Francisco – Um
Homem de Palavra” insere-se numa espécie de subgênero em pleno
desenvolvimento no documentário contemporâneo: o que registra o encontro
de uma grande personalidade pública e um cineasta de renome. Errol
Morris talvez tenha sido seu pioneiro, sobretudo com seus filmes com os
ex-secretários de Defesa dos EUA Robert McNamara (Sob a Névoa da Guerra,
2003) e Donald Rumsfeld (The Unknown Known, 2013).
Neste ano,
ainda inédito por aqui, Morris lançou em Veneza um terceiro título na
mesma vereda, “American Dharma”, no qual entrevista o guru de
comunicações da nova extrema direita planetária, Steve Bannon. Já o
recente DOK Leizpig foi aberto, em outubro, com o filme de entrevistas
de Werner Herzog com o último líder da URSS, Mikhail Gorbatchev
(“Meeting Gorbatchev”).
Lançado em maio em projeção especial do 71o.
Festival de Cannes, “Papa Francisco” já está disponível ao público
brasileiro pelo iTunes e pelo Now. Na extensa filmografia documental de
Wenders, o similar mais próximo é “O Sal da Terra” (2014), seu retrato
do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, realizado em parceria com o
filho dele, Juliano Ribeiro Salgado.
Aproximam os dois projetos a
evidente admiração do diretor alemão pelo protagonista, o extraordinário
acesso a ele ofertado, o tom de denúncia social das mazelas do planeta e
a estrutura dividida entre depoimentos e andanças a trabalho pelo
mundo. Distinguem-nos a pegada biográfica do filme sobre Salgado e a
virtual inexistência de referências históricas à trajetória do argentino
Jorge Mario Bergoglio até alcançar o papado em março de 2013.
Outra
diferença marcante reside no estilo das entrevistas com o fotógrafo e o
papa. Salgado apresenta-se com rara desenvoltura frente à câmera de
Wenders, enquanto o Papa Francisco depõe hieraticamente sentado, olhando
para a objetiva da câmera. Assim, no primeiro, a interlocução entre
cineasta e depoente se evidencia, enquanto, no segundo, dilui-se.
Wenders
contou em Cannes que gravou quatro encontros de duas horas com o Sumo
Pontífice. “Neste momento, acho que não há ninguém que tem coisas mais
importantes a nos dizer do que o papa, então quis compartilhar isso",
desenvolveu para a agência Reuters. “Estamos vivendo em uma época
absolutamente imoral, e nossos líderes políticos, líderes poderosos, são
anões emocionais. Então eu quis fazer este gigante emocional nos
falar".
Ouvimos o papa tanto endereçando-se à câmera de Wenders
como em fóruns distintos mundo afora: um encontro da Cúria Romana, uma
entrevista com crianças e adolescentes no Vaticano, uma coletiva
improvisada para a imprensa internacional durante um voo, uma fala a
milhares de fiéis reunidos na favela da Varginha no Rio, um discurso a
uma reunião do Congresso dos EUA, uma cerimônia ecumênica no Memorial da
Shoah em Jerusalém.
Os temas centrais de seu apostolado se
sucedem. Primeiro, a opção essencial pelos pobres. “Enquanto houver uma
Igreja que almeje riqueza, Jesus não está nela”, afirma e repete. “A
pobreza está ao centro do Evangelho”. Segundo, a militância contra as
disparidades sociais: “Gosto de falar de 3 Ts; trabalho, terra e teto”.
A
preocupação com a destruição do meio-ambiente vem a seguir, como
enfatizou em 2015 com a encíclica “Laudado Si’” (Louvado Sejas). “Quem é
o mais pobre dos pobres?”, pergunta. “A Mãe-Terra”, completa. “A
saquemos, a degradamos”. Em quarto lugar, prega contra “a globalização
da indiferença” diante da maior crise migratória a atingir o planeta
desde o fim da Segunda Guerra.
A cada assunto, ei-lo cruzando o
globo: uma favela carioca, um hospital na República Centro-Africana, uma
prisão na Filadélfia, um campo de refugiados na Grécia. Contudo,
raramente estes registros vão além de atividades públicas, como o belo
flagrante de seu olhar para o Cristo Redentor num sobrevoo em seu avião.
Wenders
parece satisfeito que “Um Homem de Palavra” fixe-se na palavra e não
sobre o homem. Sua principal intervenção fílmica se resume, afora
supérfluos comentários como “até a verdade se tornou uma espécie em
extinção”, à encenação, como num filme mudo à moda Carl T. Dreyer (A
Paixão de Joana d’Arc, 1928), de momentos da vida de São Francisco de
Assis (1182-1226), a inspiração central do primeiro papa a fazer-se
batizar com seu nome.
Algumas questões espinhosas, como o
tratamento da Igreja à comunidade LGBTQ e a tardia reação do Vaticano à
pedofilia de sacerdotes, são rapidamente abordadas, outras, como a
tensão na Cúria frente à liderança de Francisco, não. Testemunhamos a
voz e as ações do papa, mas permanecemos à espera de um retrato de Jorge
Mario Bergoglio.