Por Amir Labaki
Finalmente chegou a vez de Jorge Amado (1912-2001). Joselia Aguiar, baiana como ele, ex-curadora da Flip, acaba de lançar “Jorge Amado -Uma Biografia” (Todavia, 638 págs). É um prodígio de síntese, dada a intensidade da vida do biografado e a dimensão de sua obra, um triunfo de ponderação, diante das polêmicas políticas e estéticas que as marcaram, e um prazer na elegância de estilo, convidando nossa atenção até finda a leitura.
A própria autora lembra não ser a primeira biografia do autor de “Gabriela, Cravo e Canela” (1958). Amigo do escritor, o crítico e romancista Miécio Táti (1913-1980) a precedeu, com “Jorge Amado, Vida e Obra” (Itatiaia, 1961, esgotado), retratando-o portanto ainda apenas no meio do percurso.
Joselia é pioneira, assim, em biografá-lo da infância como menino grapiúna ao enterro das cinzas no jardim da mítica casa no Rio Vermelho, em Salvador. Seu desafio era maior pela existência de dois monumentos memorialísticos: a série de volumes autobiográficos de Zélia Gattai (1916-2008), companheira inseparável do escritor por mais de meio século, e o fascinante e originalíssimo livro de recordações escrito pelo próprio Amado, “Navegação de Cabotagem” (1992), estruturado acronologicamente sob a forma de notas episódicas em torno de seus encontros e andanças pelo país e pelo mundo.
“Uma Biografia” sabiamente não compete com o memorial de Zélia e com o flanar literário de Jorge, incorporando com parcimônia em sua narrativa informações, episódios e personagens lá encontrados. Assim, por exemplo. Joselia sintetiza em menos de 50 páginas o sumo da meia década (1948-1952) de errância do casal pela Europa, sobretudo em Paris e no castelo para escritores em Dobrís na então República Socialista da Tchecoslováquia, reconstituída minuciosamente por Gattai em três volumes, “Uma Chapéu para Viagem” (1982), “Senhora Dona de Baile” (1984) e “Jardim de Inverno” (1988).
Quanto à dimensão internacional da carreira e do prestígio de Jorge Amado, o livro de Joselia traz revelações ou desenvolvimentos menos conhecidos sobre a dinâmica desbravadora das edições em outras idiomas (49), a perseguição do escritor em Portugal pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) da ditadura salazarista (1933-1974) e os bastidores da resistência jamais dobrada do comitê responsável pela atribuição do Prêmio Nobel de Literatura. No âmbito nacional, o texto demonstra o papel essencial do autor de “Terras do Sem-Fim” (1943) para a profissionalização do escritor de ficção no país, e o relevo de sua incansável militância, em letra e em ação, em favor das culturas afro-brasileiras, contrariamente a enviesadas leituras críticas, recentes e nem tão recentes assim.
A biografia não doura a pílula sobre o engajamento comunista de Jorge Amado grosso modo da juventude até 1956, ano da publicação do relatório Kruchóv sobre os crimes de Stálin (1878-1953) e a invasão da Hungria por tropas soviéticas. Joselia argumenta persuasivamente em favor da eterna negação por Amado de ter escrito livros por encomenda partidária, embora reconhecesse o peso da pata stalinista sobre obras como a trilogia “Os Subterrâneos da Liberdade” (1954) e seu relato de viagens por trás da Cortina de Ferro em “O Mundo da Paz” (1951), único de seus volumes cuja reedição vetou.
Todo um livro poderia ser dedicado às estreitas relações entre Jorge Amado e o cinema (e a TV), cobrindo Joselia algumas experiências marcantes, seja dele próprio como argumentista ou roteirista (a primeira “Estrela da Manhã”, 1937, direção de Ruy Santos) ou de adaptações como a da clássica telenovela “Gabriela” (1975) e a do campeão de bilheterias no cinema “Dona Flor e Seus Maridos” (1976) por Bruno Barreto. Passou batida, porém, a versão de Carlos Diegues para “Tieta” (1996), que conta com uma participação pontual do próprio escritor.
A presença dele diante das câmeras é lembrada nos dois principais registros documentais, ambos disponíveis no YouTube: o curta picaresco “Na Casa do Rio Vermelho”, dirigido por Fernando Sabino (1923-2004) e David Neves (1938-1994), e o turbulento “Jorjamado no Cinema” (1977), de seu amigo Glauber Rocha (1939-1981). Faltou infelizmente destacar o ensaio realizado para a televisão francesa em 1995 por João Moreira Salles, centrado em aproximar sua obra do elogio à miscigenação racial por Gilberto Freyre (1900-1987).
O grande documentário sobre Jorge Amado contudo ainda está por vir. Um guia seguro, Joselia Aguiar já nos ofertou.