Por Amir Labaki
Um belo ciclo se fechou com a estreia internacional, no ainda corrente 31o. Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA), de “Marceline, Uma Mulher, Um Século”, de Cordelia Dvórak. Falecida aos 90 anos em setembro passado, Marceline Loridan-Ivens (1928-2018) foi uma das madrinhas do primeiro período do evento holandês, com o lendário nome de seu companheiro de vida e cinema, ninguém menos que Joris Ivens (1898-1989), batizando durante mais de uma década seu prêmio principal.
Em uma hora de duração, o compacto documentário de Dvórak sintetiza amorosamente a extraordinária vida e a energia eletrizante de Marceline. Rozenberg de nascimento, francesa de origem judaico-polonesa, adolescente ela sobreviveu a Auschwitz-Birkeneau, perdendo o pai, Szlama (Salomão), nos campos de concentração nazistas.
No filme, que segue de perto a narrativa de seu tardio livro de memórias “Ma Vie Balagan” (Robert Laffont, 2013), Marceline recorda que Birkenau, “minha universidade”, foi onde “compreendeu o mundo”. Em 2002, seu único longa-metragem ficcional como diretora, “La Petite Prairie aux Bouleaux” (a bétula da pequena pradaria), reencenou seu retorno contemporâneo ao campo de extermínio sob a pele de um alter-ego interpretado por uma Anouk Aimée (Uma Homem, Uma Mulher) de cabelos ruivos como aqueles que até o fim caracterizaram a cineasta.
Não à toa, recorda ela para Dvórak, Joris Ivens dizia: “eu sou o vento, você é o fogo”. Os destinos dela e do holandês voador, um dos pioneiros e grandes mestres do documentário (Chuva, 1929), colaram-se por mais de um quarto de século, desde o encontro parisiense no começo dos anos 1960, após uma projeção do mais poético dos curtas rodados por ele no Chile, “A Valparaíso” (1963). “Éramos dois exilados”, define Marceline. “Ele é um homem do final do século 19. Um poeta e um artista”.
Ao se conhecerem, com trinta anos de idade de diferença, Ivens já tinha se tornado uma lenda do documentarismo engajado (Terra Espanhola; Indonésia Chamando), enquanto ela dava seus primeiros passos como cineasta (Argélia, Ano Zero, 1962, codir. Jean-Pierre Sergent). Sua atividade cinematográfica mais célebre tinha sido como a empática protagonista de “Crônica de um Verão” (1961), o marco zero do “Cinema Verité” de Jean Rouch (1917-2004) e Edgar Morin, no qual Marceline flanava por Paris entre suas memórias e uma enquete sobre a felicidade entre franceses anônimos.
Da extensa filmografia do casal, o documentário de Dvorák traz bastidores preciosos de “Paralelo 17” (1968), sobre o Vietnã em guerra, e da série “Como Yukong Moveu as Montanhas” (1976), rodada em pleno turbilhão da Revolução Cultural Chinesa (1966-1976). Visitada em seu apartamento parisiense por Xuan Phuong, a intérprete vietnamita apontada pelo próprio Ho Chi-Minh (1890-1969), Marceline lembra que “a viagem foi muito violenta” e, a filmagem, “muito difícil e muito excitante”.
“O mundo inteiro estava contra a China. Então éramos a favor”, sustentou sobre o extenso projeto lá desenvolvido. Para viabilizá-lo, foi essencial a “relação muito especial” de Ivens com o então primeiro-ministro chinês, Chu En-Lai (1898-1976).
O estilo da série, mais próximo do Cinema Direto, “era um jeito de filmar totalmente estranho a Joris”. Ela própria assume a irregularidade dos 14 episódios de “Como Yukong Moveu as Montanhas”. Divididos na edição por tema e locação, “os que deram certo eram os mais próximos das pessoas”.
Após a morte de Ivens em 1989, confessa Marceline, “levou oito anos para recuperar minha energia”. Depois de escrever e rodar sua ficção semi-autobiográfica, o peso da idade a levou a afastar-se do cinema e reinventar-se como escritora. O primeiro livro de memórias foi seguido por dois outros. Escrito como uma carta ao pai, “Et tu n‘es pas revenu” (e você não voltou) a tornou uma autora best-seller na França. Neste ano, ainda lançou “L’Amour Après”, “o amor depois dos campos”, explica ela no filme de Dvórak.
Vendo-a numa das primeiras cenas remexer uma mala de documentos familiares, lembrei de nosso convívio em 1992 no júri do Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen. Sob sua presidência, depois de mais de doze horas de deliberação, um dos filmes que premiamos, “O Baú” de Dieter Reifarth e Bert Schmidt, tratava da grande valise que servia de base para uma instalação memorialística de uma artista exilada argelina.
“Que júri!”, pilhareava Marceline ainda mais de duas décadas depois, quando de nosso último jantar, há quatro anos em Amsterdã. Continuava sem papas na língua, antenada no mundo, plena de energia e cheia de projetos. A chama não largava a garota dos cabelos vermelhos –até o fim.