Por Amir Labaki
Quase meio século após o início de suas filmagens (48 anos para ser preciso), 33 anos depois da morte do diretor, o último filme de ficção rodado por Orson Welles (1915-1985), “O Outro Lado do Vento”, finalmente chega ao público, finalizado e distribuído pela Netflix. Não vem sozinho, acompanhado por um documentário de Morgan Neville (A Um Passo do Estrelato) sobre as conturbadas filmagens e a kafkiana ciranda entre coprodutores e distribuidores internacionais, intitulado “Serei Amado Quando Morrer”.
“O Outro Lado do Vento” é o acerto de contas de Welles com Hollywood, não mais aquela da era dos estúdios, que lhe cortou as asas depois do fracasso da versão retalhada de “Soberba” (1942), mas a “nova” Hollywood, ainda num período de transição entre a febre dos jovens cineastas independentes (“Bonnie e Clyde” e “Sem Destino” como maiores símbolos), do final dos anos 1960, e a obcecada por “blockbusters” desde a explosão nas bilheterias de “Tubarão” (1975) e “Guerra nas Estrelas” (1977). Ele contava então 55 anos e desenvolvera sua acidentada carreira flanando pela Europa do pós-guerra, com um isolada incursão americana em 1958 para rodar um drama policial tão maiúsculo como barroco, “A Marca da Maldade”, insuficiente para refixá-lo profissional e pessoalmente em seu país natal.
Dois filmes mesclam-se em “O Outro Lado do Vento”. Um é o falso documentário sobre o último dia na vida de um veterano cineasta hollywoodiano ficcional, Jake Hannaford, interpretado por um diretor verdadeiro, John Huston. O outro é o inacabado filme final que Hannaford ainda tenta finalizar, com o título de “O Outro Lado do Vento”.
Não poderia ser maior o contraste estilístico entre as duas obras e entre a combinação delas e a filmografia pregressa de Welles. A primeira é uma ultrafragmentada colagem pretensamente documental centrada na festa de 70 anos de Hannaford, realizada no rancho californiano de uma velha atriz polonesa com que trabalhara, Zarah Valeska (Lilli Palmer).
A celebração o reúne com os colaboradores habituais, seus “vagalumes”, muitos dos quais envolvidos na produção em andamento (Cameron Mitchell, Edmond O’Brien, Paul Stewart), e com a nova geração hollywoodiana, incluindo participações especiais de diretores então iniciantes como Paul Mazursky (1930-2014) e Henry Jaglom. Presença muito mais decisiva tem outro jovem cineasta, então em pleno apogeu, Peter Bogdanovich, interpretando uma versão dele próprio rebatizada como Brooks Otterlake, o pupilo predileto de Hannaford como Bogdanovich tornara-se o de Welles.
O grande ausente na festa é o ator John Dale (Robert Random), um duplo do rockeiro cult Jim Morrison (1943-1971) que protagoniza ao lado de Oja Kodar, companheira e aqui co-roteirista de Welles, o lisérgico, contemplativo e altamente erótico longa-metragem conceitual de despedida de Hannaford. Substituído na festa por manequins à sua imagem, Dale colocara o filme dentro do filme em suspensão ao abandonar as filmagens, talvez devido às tensões na relação homoerótica que se suspeita ter mantido com o lendário diretor, camuflado este sob a fama de “Ernest Hemingway do cinema”.
Todo este universo, de marcado erotismo, nudez recorrente e difusa homossexualidade, representa território virgem para o cinema de Welles. Ele o visita sobretudo na ficção rodada por Hannaford, nitidamente inspirada em “Zabriskie Point” (1970), a isolada experiência hollywoodiana do mestre existencialista italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), em sua dança persecutória de corpos vagantes pela amplitude americana.
Ter frisado a contribuição essencial do diretor de fotografia Gary Graver (1938-2006) na realização, prática e estética, de “O Outro Lado do Vento” é o ponto alto do documentário de Neville. Graver imprime dois registros polares ao pseudodocumentário e à falsa ficção, alternando no primeiro entre o preto e branco e o colorido, com grão estourado, numa mimese perfeita do estilo do “cinema verité” e criando para o segundo uma atmosfera onírica de paleta de cores vivas em cinemascope.
Dos projetos de Welles de alguma forma postumamente finalizados (É Tudo Verdade; Dom Quixote), “O Outro Lado do Vento” parece o mais orgânico e fiel às intenções originais. Na superfície do entrecho, remete a outras inquisições sobre a identidade em sua filmografia, como “Cidadão Kane” (1940) e “Grilhões do Passado” (1955).
Mas a perplexidade que espelha sobre a fatura cinematográfica o alinha sobretudo com suas reflexões no ensaio documental que realizou simultaneamente, “Verdades e Mentiras” (1973), o último filme que lançou em vida. Atormentado e insubmisso, Orson Welles questionou a essência do cinema até o fim.