Por Amir Labaki
Lançado mundialmente dentro do ciclo Cannes Classics em maio último, finalmente desembarca por aqui uma das mais tocantes homenagens fílmicas ao centenário de nascimento de Ingmar Bergman (1918-2007). Exibido no Rio em sessão especial no começo desta semana, “À Procura de Ingmar Bergman”, da cineasta alemã Margarethe von Trotta, será uma das atrações da 42a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entre os dias 18 e 31 deste mês.
Consagrada ela mesma como a principal voz feminina da geração do Novo Cinema Alemão surgido entre os anos 1960 e 70, ao lado de Alexander Kluge, Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog e Wim Wenders, von Trotta exonera-se de excessivas reverências, sem abrir mão de prestar o devido tributo, para desenvolver um ensaio pessoal sobre um cineasta essencial para sua própria trajetória. Ao entrevistar o cineasta e crítico francês Olivier Assayas, autor ao lado de Stig Björkman de um notável livro de entrevistas com o diretor sueco (Conversation avec Bergman, Cahiers du Cinéma, 1990), ela revela como o impacto de assistir seu primeiro Bergman, “O Sétimo Selo” (1957), despertou-a para o cinema como arte e catalisou sua carreira cinematográfica.
Não surpreende, assim, que “À Procura de Ingmar Bergman” se inicie com uma minuciosa descrição de memória, feita por von Trotta na locação original, plano a plano, da mítica sequência em que o cavaleiro medieval vivido por Max von Sydow se defronta com a Morte. A diretora alemã parte então para entrevistar colaboradores, familiares e cineastas contemporâneos, comentando suas falas com trechos de obras de Bergman, sem maior preocupação cronológica.
A jornada de von Trotta em torno da vida e da obra do diretor de “Fanny e Alexander” (1982) assume assim um tom triplamente pessoal: o dela, o dele e o de seus entrevistados. Nada mais harmonioso com a leitura autobiográfica da produção de Bergman por ela desenvolvida.
Sua atriz, mulher e colaboradora Liv Ullmann mais uma vez rouba a cena no depoimento repartido pelo decorrer do filme. Dois momentos são inesquecíveis: ela recorda o primeiro encontro com Bergman, no qual foi de chofre convidada a participar de um filme dele (Persona, 1966), e a decisão impulsiva de voar da Noruega para a Suécia, intuindo estar ele em seus últimos instantes de vida.
Sem qualquer afetação, von Trotta recorda a emoção ao descobrir, no catálogo da mostra especial A Lista de Bergman realizada em 1995 pelo Festival de Cinema de Gotemburgo, a presença de seu “Os Anos de Chumbo” (1981, Leão de Ouro em Veneza) entre os 11 filmes prediletos dele. “Eu era a diretora mais jovem e a única mulher”, nota.
Ela dá sua própria lição de cinema no diálogo com o diretor sueco Ruben Östlund (The Square, Palma de Ouro em Cannes 2017), que com sinceridade se afirma numa corrente cinematográfica oposta a de Bergman na Suécia e argumenta ser ainda cedo para abordar-se a dimensão do legado dele. Von Trotta sustenta, por sua vez, que a influência direta de Bergman sobre sua obra tem se dado inconscientemente, percebida por ela mesma a posteriori de suas criações. Imitar diretamente é o fim, assevera.
A origem germânica da cineasta enriquece a sequência dedicada ao autoexílio de Bergman na Alemanha (1976-1984) a partir de sua agressiva interpelação por autoridades suecas devido a pretensas pendências fiscais. Seu assistente de direção em “Da Vida das Marionetes” (1980), Johannes Kaetzler, e a atriz Gaby Dohm, coadjuvante neste filme como no anterior “O Ovo Da Serpente” (1977), testemunham o perturbado estado mental definido pelo cineasta em suas memórias como de “miséria e trevas”.
Dohm recorda ainda como, apesar do domínio fluente do alemão por Bergman, o incomodava a perda da espontaneidade ao trabalhar noutra língua. Nota também como, ao dirigir atores, ele sentia na língua alemã uma menor gama emocional comparativamente à sueca.
“À Procura de Ingmar Bergman” reafirma, por outro lado, a importância íntima de sua obra como dramaturgo e diretor de teatro. Kaetzler lembra como Bergman ficava muito mais relaxado dirigindo um palco do que um set de filmagem. Já Assayas defende que seus textos teatrais teriam merecido um Prêmio Nobel.
Se o cineasta Victor Sjöström (1879-1960) foi mesmo seu maior mestre cinematográfico, com Bergman assistindo ao menos uma vez por ano seu clássico mudo “A Carruagem Fantasma” (1921) e celebrando-o como o intérprete do ancião de “Morangos Silvestres” (1957), ninguém parece disputar, no topo de seu panteão artístico, os postos dos dramaturgos Ibsen (1828-1906) e Strindberg (1849-1912).
Cindi-lo seria perdê-lo. Bem fez Margarethe von Trotta, em sua carinhosa busca, ao homenagear Ingmar Bergman por inteiro.