Por Amir Labaki
Nada seria mais superficial do que assistir a “Humberto Mauro”, o novo documentário sobre um dos pioneiros do cinema brasileiro dirigido por seu sobrinho neto André Di Mauro, como uma mera homenagem a um cineasta essencial mas ciclicamente esquecido. Exibido pela primeira vez no Brasil no último final de semana em mostra informativa do 51o. Festival de Brasília, depois da estreia mundial na 75a. Mostra Internacional da Arte Cinematográfica de Veneza no começo do mês, trata-se a um só tempo, de uma restauração, sim, e de um clamado.
Na pequena mas culturalmente dinâmica Cataguases do sul de Minas, entre meados e fins dos anos 1920, Humberto Mauro (1897-1983) liderou um dos últimos e talvez o principal grande ciclo de cinema silencioso desenvolvido fora dos grandes centros urbanos da época. Os ecos no Rio de Janeiro, então capital da República, de melodramas como “Tesouro Perdido” (1926) e “Brasa Dormida” (1928) catalisaram o convite do produtor Adhemar Gonzaga (1901-1978) para que Mauro se unisse ao nascente estúdio Cinédia, dando origem a um novo ciclo, agora sonoro, em que se destacou “Ganga Bruta” (1933).
Em 1937, a convite desta vez de Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), Mauro se tornou o cineasta responsável pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), realizando até 1964 mais de 230 curtas e médias-metragens, sobretudo didáticos, históricos e folclóricos. No período, emplacou apenas mais três longas-metragens, “O Descobrimento do Brasil” (1937), “Argila” (1940) e “O Canto da Saudade” (1952).
Com estreia em salas marcada para o próximo aniversário do cineasta (30 de abril), “Humberto Mauro” reconstitui-lhe a trajetória de forma ensaística, recusando o dispositivo biográfico mais tradicional. Estrutura-se fundamentalmente a partir da edição associativa e não cronológica de trechos extraídos dos filmes do próprio Mauro, em diálogo com registros apenas sonoros de entrevistas dele (uma ao MIS-RJ, em 1966, outra a Ronald Werneck, sem data). O resultado está entre os recentes “Rocha Que Voa” (2002), de Eryk Rocha sobre seu pai, Glauber Rocha (1939-1981), e “Deixa Que Eu Falo” (2007), documentário sobre Leon Hirszman (1937-1987) dirigido por Eduardo Escorel.
O Humberto Mauro por Humberto Mauro segundo André Di Mauro desenvolve-se seguindo três vetores interpretativos, dois originários de análises clássicas e um terceiro que readapta para o presente a essência desta segunda. O primeiro eixo, referente a Mauro como um cineasta lírico, nostálgico e telúrico, remete ao pioneiro estudo de Mauro por Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977).
“Muitas vezes o Humberto mocinho”, escrevia o crítico em 1972, “se associou em meu espírito ao maduro cineasta Humberto Mauro de quarenta anos depois, e ambos me fizeram pensar em (Robert) Flaherty, que só encontrava conforto moral nas formas arcaicas de convivência social e procurava modelos entre os esquimós ou em ilhas esquecidas do Pacífico ou da Irlanda”. Isto é, o Brasil rural, no caso de Mauro.
O segundo vetor recupera a entronização do diretor mineiro como pioneiro do cinema autoral brasileiro estabelecida em 1963 por Glauber Rocha em sua “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”. “É fazer ‘cinema novo’ contra o cinema mecânico”, conclamava então Glauber. “Humberto Mauro é a primeira figura deste cinema no Brasil”.
O documentário de Di Mauro é generoso na recuperação do testemunho do próprio cineasta mineiro sobre sua formação autodidata, a espontaneidade de seu método de filmagem e a individualidade de seu olhar. É disto sintomático que “Humberto Mauro” privilegie em sua esmerada edição a extraordinária beleza de seus enquadramentos, em ficções como em documentários, com menor ênfase em sua perícia narrativa.
Por fim, André Di Mauro atualiza a leitura glauberiana de Mauro como diretor independente e anti-industrial, sintetizado na fórmula do cineasta-autor em oposição ao cineasta-artesão. Ecoa como uma crítica ao atual modelo vigente de projetos, planilhas e editais o repúdio de Mauro à “complicação dos diabos” das exigências burocráticas para a viabilização das produções.
“Filme sem liberdade de criação e de realização não pode fazer nada”, reclama o diretor de “Ganga Bruta”. É como se o veterano pioneiro de Cataguases lançasse ao ar um alerta à era Ancine.