Por Amir Labaki
O último dia 14, a data precisa da efeméride, foi apenas o epicentro de um ano de celebrações mundo afora do centenário de nascimento do cineasta, diretor de teatro e dramaturgo sueco Ingmar Bergman (1918-2007). Basta uma visita ao site da Fundação Ingmar Bergman para perder o fôlego com o que ainda está por vir, de um festival teatral no próximo mês em Estocolmo com mais de 50 espetáculos, incluindo o balé inédito “Dançando com Bergman” de Mats Ek, Alexander Ekman e Johan Inger, a um CD com novas versões para as trilhas de seus filmes, sob a batuta de Roland Pöntinen.
O recente Festival de Cannes foi a plataforma de lançamento para os principais títulos da nova onda de documentários dedicados ao diretor de “Fanny & Alexander” (1982). Cannes Classics apresentou “Bergman – 100 Anos”, de Jane Magnusson, já em cartaz por aqui, e “Searching for Bergman” (À Procura de Bergman), dos alemães Margarethe von Trotta e Felix Moeller.
No começo do ano, a Suécia já assistira na TV a “O Início de Bergman: Angústia, Amor e Dor de Estômago”, a nova série de Marie Nyreröd, a mesma que em 2004 realizara o tríptico de filmes de entrevistas “A Ilha de Bergman”, sobre suas relações com a ilha de Fårö, o cinema e o teatro. O canal franco-alemão Arte também estreou “Ingmar Bergman – Por Trás da Máscara”, de Manuelle Blanc e Maria Sjöberg, exibido no Brasil neste mês pelo canal Curta!
Estão ainda sendo finalizados três outros filmes. Nyreröd vai retratar em “A Mulher Invicta” a jornalista Gun Grut Bergman (1916-1971), a terceira esposa do cineasta, entre 1951 e 1959. Autor de estudos clássicos sobre o diretor, o crítico e cineasta Jörn Donner termina “A Memória de Ingmar Bergman”, enquanto Kristian Petri dedica “L136” aos bastidores da realização por Vilgot Sjöman (1924-2006) de um documentário sobre as filmagens por Bergman de “Luz do Inverno” (1963).
Ao menos “Bergman -100 Anos” já parece ter vindo para ficar na bergmaniana essencial de documentários, ao lado do curta “Imagens do Playground” (2009), realizado por Stig Björkman a partir de filmagens caseiras do jovem Bergman. A sacada de Jane Magnusson foi estruturar seu filme a partir de um único ano excepcional na vida e obra de Bergman; 1957. O título original explicita este foco: “Bergman, Um Ano, Uma Vida”.
Certamente foram valiosas para Magnusson as experiências prévias em dois documentários anteriores sobre ele. O primeiro, “Bergmans Video” (2012), transitava pela filmoteca VHS dele em seu retiro em Fårö. Por sua vez, “Trespassing Bergman” (codir. Hynek Pallas, 2013) estrutura-se em torno de depoimentos de colaboradores dele, como as atrizes Harriet Andersson e Pernila August, e de cineastas como Lars von Trier, Martin Scorsese e Woody Allen.
Depois de um dupla de filmes digamos generalistas sobre Bergman, Magnusson parece ter alçançado o distanciamento necessário para uma abordagem mais original. “Bergman -100 Anos” constrói-se a partir de um período iluminado de doze meses em sua trajetória, sem limitar-se àquele ano áureo, retrocedendo às suas origens e prosseguindo até seus últimos dias.
Tanto para sua produção artística como para sua vida privada, 1957 oferece um ponto alto de observação que joga luz sobre o genial, demoníaco e obsessivo homem de cinema e de teatro. Sua extraordinária safra daquele ano inclui, no cinema, o lançamento de “O Sétimo Selo” e a concepção, realização e estreia de “Morangos Silvestres”; no teatro, quatro montagens, com destaque para a histórica encenação em mais de 5 horas de “Peer Gynt” de Ibsen; por fim, ele debuta ainda na TV, dirigindo “Herr Sleeman Kommer” (O Sr. Sleeman Está Vindo).
Na esfera pessoal, Magnusson não doura a pílula. Aos 39 anos, autocentrado e neurótico, atormentado por dores estomacais, Bergman é relapso com os seis filhos dos três casamentos e infiel em série com suas mulheres, atravessando aquele ano entre os estertores de seu casamento com Gun e três casos extraconjugais. Compulsividade é o nome de seu jogo, em todas as esferas.
O Bergman sombrio e o majestoso emergem inexoravelmente intricados, a partir de uma estrutura cimentada pela narração da própria Magnusson, mantendo coesos depoimentos valiosos dele em acervo, outros materiais de arquivo e novas entrevistas com seus intérpretes como Elliott Gould, Lena Endre e, maior de todas, Liv Ullmann. Revelações de bastidores tampouco faltam, nenhuma mais importante, porém, do que a de um artista nada menos complexo e multifacetado do que suas magníficas criações. Nunca esteve mais viva a paixão de Bergman.