Por Amir Labaki
Morto aos 92 anos em Paris no último dia 5, Claude Lanzmann transcende a merecida classificação como um dos maiores documentaristas da história, a partir de seu filme-monumento “Shoah” (1985), sendo talvez o melhor exemplo de um intelectual público da tradição francesa a trocar a pena pela câmera. Sempre homem de ação e da militância, Lanzmann forjou-se autodidaticamente cineasta apenas na segunda parte de sua longa e atribulada trajetória, marcando como poucos contemporâneos a forma de expressão de sua maturidade.
Antes de abraçar o cinema, nascido em 1925 numa família judaica não-religiosa parisiense, Lanzmann participou quando jovem da resistência francesa anti-nazista em Clermont-Ferrand (centro do país), estudou filosofia na França e na Alemanha e ganhou a vida como jornalista na imprensa escrita e na TV. Em 1952, o encontro com os filósofos Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986) estabeleceu laços inquebrantáveis, unindo-o ao grupo da revista “Les Temps Moderns”, como colaborador, editor e finalmente diretor, de 1986 até sua morte.
Deste primeiro período de intelectual das letras, testemunha-lhe o talento a seleção de resenhas, perfis, ensaios e reportagens recolhidos em “La Tombe du Divin Plongeur” (O túmulo do mergulhador divino, Gallimard, 2012, inédito aqui). O mesmo texto elegante e irônico e o mesmo olhar percuciente embalam tanto matérias para a revista Elle sobre a fuga do Dalai-Lama do Tibete e uma turnê do cantor Charles Aznavour quanto escritos a favor da luta pela independência da Argélia em “Les Temps Moderns”.
Como lembra em seu intenso livro de memórias “A Lebre da Patagônia” (Companhia das Letras, 2011), a transição para o universo das imagens começou com o trabalho como entrevistador para a TV francesa, no final dos anos 1960. Seu primeiro documentário, “Pourquoi Israël” (Porque Israel, 1970), uma produção independente, reflete por outros meios seu engajamento visceral com o então novo país, iniciado por uma pioneira viagem em 1952 e aprofundado por seu trabalho como editor principal da clássica edição dedicada a “Le Conflit Israëlo-Arabe” por “Les Temps Moderns” em 1967.
Encomendado no começo de 1973 por um amigo do ministério das Relações Exteriores israelense, “Shoah” viria à luz 12 anos e 350 horas de filmagens depois. O extermínio de 6 milhões de judeus europeus pelos nazistas traduz-se finalmente numa obra cinematográfica à altura da tragédia histórica. O que se convencionou equivocadamente chamar de “Holocausto”, isto é, “oferenda pelo fogo”, renomeava-se devidamente como “shoah”, “catástrofe” em hebraico.
Em suas 9 horas e meia, como escreveu Simone de Beauvoir, “a grande arte de Claude Lanzmann está em fazer falar os lugares, em ressuscitá-los através das vozes e, para além das palavras, exprimir o indizível através de rostos”. “Shoah” renuncia a todo e qualquer material de arquivo, nos leva aos campos da morte (Auschwitz-Birkenau, Chelmno, Sobibor, Treblinka) e cruza o mundo para entrevistar algozes, testemunhas e sobretudo “retornantes”, como Lanzmann prefere classificar os sobreviventes.
Seria inútil tentar aqui resumir a biblioteca catalisada pelo filme. “Shoah” representa o mais legítimo herdeiro fílmico da literatura de Primo Levi (É Isso um Homem?) e da pesquisa de Raul Hilberg (A Destruição dos Judeus da Europa), apoiando-se em predecessores cinematográficos da dimensão de “Noite e Neblina” (1956), de Alain Resnais, e “A Tristeza e a Piedade” (1969), de Marcel Ophuls.
O impacto de “Shoah” ainda se faz sentir hoje no mundo e nos filmes. Steven Spielberg, por exemplo, se inspirou nele para desenvolver sua fundação com testemunhos dos sobreviventes da barbárie nazista. No campo do documentário, “o categórico imperativo da busca e da transmissão da verdade”, na síntese involuntário do próprio Lanzmann (que recusava a classificação para o filme), ecoa do “cinema de conversa” de Eduardo Coutinho às particulares buscas de memórias do horror do cambojano Rithy Panh (S-21, 2003) e do chinês Wang Bing (Fengming, 2007).
Nos 33 anos seguintes, Lanzmann realizou outros sete filmes, cinco dos quais desenvolvidos, cada qual a sua forma, a partir do material de entrevistas deixado de fora em “Shoah”. O mais recente, “Les Quatre Souers” (As Quatro Irmãs), com testemunhos de quatro mulheres “retornantes”, entrou em salas na França na véspera de seu falecimento. O mais complexo e vigoroso, concordava o próprio cineasta, é “O Último dos Injustos” (2013), que coloca em xeque o estigma de colaboracionismo dos anciões judeus que lideraram os conselhos nos guetos.
A história cuidará de aparar as rebarbas de seu temperamento vulcânico e extremismo polemista. Com Claude Lanzmann nos despedimos de um dos últimos gigantes da consciência mundial do século 20, um dos raros que o cinema conquistou o privilégio de chamar de seu.