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Por Amir Labaki

Se você não gosta de futebol ou despreza a Copa do Mundo, iniciada ontem em Moscou, não poderia ser mais oportuna a estreia no Netflix, no último dia 8, da série documental “The Staircase” (A Escadaria), do francês Jean-Xavier de Lestrade. Trata-se simplesmente da “mãe” de todas as minisséries não-ficcionais contemporâneas, lançada originalmente pelo Canal Plus na França em 2004.

Seu formato original era de oito episódios com cerca de 50 minutos de duração. Novos desenvolvimentos no caso criminal coberto por Lestrade levaram-no a rodar uma atualização em 2011 e 2012 sob a forma de um longa-metragem de pouco mais de duas horas, exibido no começo de 2013. Mais novidades pautaram um novo bloco de três episódios, rodados entre 2014 e 2017 e inéditos até a semana passada. Com o longa-metragem dividido em dois, o conjunto surge repaginado agora como uma série de 13 episódios.

Jean-Xavier de Lestrade projetou-se internacionalmente ao conquistar o Oscar de melhor documentário de longa-metragem em 2001 com “Morte numa Manhã de Domingo” (Un Coupable Idéal), no qual desconstrói a racista incriminação em 2000 de um adolescente negro pelo assassinato de uma turista branca num hotel de Jacksonville, na Flórida. Interessado em prosseguir sua análise do sistema judicial dos EUA, mas agora sob a perspectiva de um acusado de assassinato que fosse branco e rico, durante cerca de cinco meses estudou 300 casos em julgamento, até fixar-se na acusação contra Michael Peterson.

Formado em ciência política, veterano dos fuzileiros navais no Vietnã, escritor de romances inspirados por sua experiência militar e colunista do Durham Herald-Sun na Carolina do Norte, Peterson preparava-se para ser julgado como o único suspeito do assassinato de sua segunda mulher, Kathleen, em dezembro de 2001, aos pés da escadaria interna da casa em que viviam.

Em sua versão, depois de uma noite corriqueira regada a papo e vinho, eles se separaram na piscina da casa até ele a reencontrar agonizando sobre uma larga poça de sangue e chamar a polícia. Na ausência de indícios de um terceiro participante e diante do ceticismo quanto à possibilidade de uma ou mais quedas nos degraus da escada terem causado as diversas lacerações no crânio de Kathleen, Peterson tornou-se réu por assassinato premeditado em Durham.

Contatados durante os preparativos para o julgamento, Peterson e seu advogado, David Rudolf, aceitaram conceder livre acesso à equipe de Lestrade. Dos cinco filhos do casal, entre os próprios, os adotados e os de seus primeiros casamentos, apenas uma, Caitlin, ficou ao lado das duas irmãs de Kathleen, Lori e Candance, acreditando na culpa de Michael Peterson.

Quatro características distinguem “The Staircase”. Primeiro, devido ao pioneirismo no formato. Foi preciso passar mais de uma década após sua estréia para que séries policiais não-ficcionais se estabelecessem entre as atrações favoritas de canais por assinatura e distribuidoras em streaming, como provam “The Jinx” (2015, HBO), “Making a Murderer” (2015, Netflix) e “O.J.: Made in America” (2016, ESPN).

Segundo: em sua abundância de descobertas, vilanias e reviravoltas, sobre as quais me calo para evitar “spoilers”, é um caso modelar em que o material forjou o novo formato. Há aqui uma notável organicidade na narrativa seriada, ao contrário, por exemplo, do que vemos em “Wormwood” (Netflix, 2017), de Errol Morris, cujos quatro episódios bem poderiam ter sido editados nas duas horas de um longa-metragem.

A terceira peculariedade é o acompanhamento do processo praticamente em tempo real, com exceção do flagrante da morte de Kathleen e dos primeiros passos da investigação, que precederam o início do projeto. Em suas três fases (2002-2003, 2011-2012, 2014-2017), “The Staircase” edifica-se fundamentalmente a partir de registros feitos por Lestrade e equipe, incluindo entrevistas regulares com Peterson, os familiares que o apoiam e o advogado Rudolf.

Por fim, quarto: em nenhuma produção similar o engajamento a favor de seu protagonista foi tão explícito. Jean-Xavier de Lestrade acredita na inocência de Michael Peterson, ponto. Assim, mantém na edição um plano deles se abraçando celebrando uma das vitórias parciais, um agradecimento direto a ele do próprio Peterson e até, no episódio final, uma vigorosa crítica à sua posição e à da série proferida num tribunal por uma das irmãs de Kathleen.

Convicção oposta tem, para ficar num exemplo, a conceituada escritora de reportagens e romances policiais, Diana Fanning, que publicou “Written in Blood” (St. Martin’s Press, 426 págs, US$ 22, 2005) logo após a estreia da primeira fase de “The Staircase”. Até hoje, nada a fez mudar de opinião.

Numa entrevista recente, Lestrade explicou: “Quando (Michael) falava sobre seu amor por Kathleen, eu podia realmente sentir aquela sinceridade. Mas, ao mesmo tempo, havia algo de misterioso naquele homem. Era uma sensação estranha”. Depois de mais de doze horas eletrizantes, esta mesma ambiguidade -e a dúvida inicial (queda ou crime?)- continuam a nos assombrar.