Por Amir Labaki
Com rara agilidade na história contemporânea do documentário político brasileiro, já é possível aos espectadores confrontarem duas versões polares da cassação pelo Senado Federal do mandato presidencial de Dilma Roussef em 2016. De um lado, está desde ontem nos cinemas pelo país “O Processo”, de Maria Augusta Ramos. De outro, encontra-se disponível há algumas semanas no Now “Impeachment –O Brasil nas Ruas”, de Beto Souza e Paulo Moura.
São filmes opostos em quase tudo. “Impeachment” tem uma hora de duração e formato televisivo. “O Processo” desenrola-se em mais que o dobro do tempo e reafirma o dispositivo documental ascético e belamente plástico característico da diretora.
Refletindo sua muito maior elaboração cinematográfica, “O Processo” tem conquistado a chancela da seleção e premiação em festivais pelo mundo afora (Nyon, Indie Lisboa, DocMadrid), a partir da sua première em fevereiro passado no Festival de Berlim e passando por sua pré-estreia brasileira em projeção especial no É Tudo Verdade no mês passado. “Impeachment”, por sua vez, com sua modéstia formal e assinado pelos gaúchos Beto Souza, cineasta (Netto Perdeu Sua Alma; A Batalha dos Aflitos), e Paulo Moura, cientista político, chegou às telas há pouco mais de um ano primeiramente em exibições especiais em espaços como o Fecomercio, em São Paulo, e a Cinemateca Capitólio, de Porto Alegre.
Ambos estruturam-se temporalmente auxiliados pelos registros audiovisuais sobretudo da TV Câmara e da TV Senado, desde a aceitação da denúncia contra Dilma por crime de responsabilidade pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, em 2 de dezembro de 2015, até sua condenação e consequente cassação pelo Senado, em 31 de agosto de 2016. Proporcionalmente, o recurso a esse material de arquivo, com ênfase na tramitação final pelo Senado, é maior em “O Processo” do que em “Impeachment”.
Em coerência com seu esmerado método, Ramos abre mão de entrevistas e arquiteta seu documentário a partir de filmagens que mesclam registros bem-compostos de eventos públicos e gravações no estilo “mosca na parede” da escola do Cinema Direto, capturando seus protagonistas à quente, seja em ação ou em breves pausas. São eles principalmente os senadores petistas Gleisi Hoffman e Lindbergh Farias e o ex-ministro da Justiça e advogado de defesa José Eduardo Cardozo, coadjuvados pela advogada Janaína Paschoal, uma das autoras da denúncia.
Já o filme de Souza e Moura constrói sua narrativa a partir sobretudo de mais de duas dúzias de entrevistas, ilustradas por gravações e fotos das manifestações pró-impeachment que levaram milhões de pessoas às ruas pelo país afora. Entre os depoentes, protagonistas do processo, como os advogados responsáveis pela peça acusatória, Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal, e lideranças civis dos vários movimentos mobilizados, como Fernando Holiday (MBL) e Rogério Cherquer (Vem Pra Rua), além de comentaristas como Demétrio Magnoli e Marco Antônio Villa.
Encastelados em suas teses mutuamente excludentes, ambos reservam espaços marginais à contra-argumentação, ainda que em “O Processo” este seja um cisco mais amplo. “Impeachment” traz assim a voz dos vencedores, enquanto “O Processo” flagra os bastidores dos vencidos. Diante destas opções estéticas, compreende-se que a dramaticidade seja marcadamente superior no documentário de Ramos.
“O Processo” cresce quando se cola aos entreatos do impeachment. O teatro do julgamento ganha em frescor e em interesse nas articulações e desabafos nos gabinetes de Gleisi, Lindbergh e Cardozo, na gravação de entrevista de Dilma a correspondentes estrangeiros, no esboço de autocrítica diante dos senadores petistas feito pelo ex-ministro Gilberto Carvalho, e mesmo nos registros caricatos de Janaína em intervalos privados. Mais ou menos espontâneos, aqui e ali reiterativos, são a alma do filme.
Para o público do presente, dada a radicalização da hora, “O Processo” e “Impeachment –O Brasil Nas Ruas” devem cindir as atenções e pregar apenas para convertidos. Não deixa de ser notável ver o documentário brasileiro chamando assim sua cota de responsabilidade na tomada do pulso do país.