Por Amir Labaki
Recebi a notícia da morte de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), no sábado passado, dia 21, por volta das 18h, a pouco mais de uma hora da cerimônia de premiação do É Tudo Verdade 2018. Durante a semana, soubera de recentes problemas de saúde, mas os subestimei. Encontrara-o em plena forma há um ano e meio, na Academia Brasileira de Letras, quando ele falara animadamente da perspectiva de afinal concretizar seu projeto de longa-metragem ficcional sobre D. Pedro II, depois de combinarmos a gravação de uma entrevista, infelizmente não realizada, para minha série Cineastas do Real no Canal Brasil.
Por um instante pensei em adiar a entrega dos prêmios, mas logo descartei a ideia: celebrar a força do cinema, e em especial do cinema brasileiro, era, é a melhor forma de homenagear Nelson. Abri a cerimônia improvisando uma elegia a ele, como que pacificado pelo misto de serenidade e vigor transmitido por Nelson a cada encontro.
Mesmo sendo um festival de documentários, ele se sentiria em casa, tendo rodado vários durante seus mais de 60 anos de carreira, incluindo o belo díptico final dedicado a Tom Jobim, “A Música Segundo Tom Jobim” (co-direção: Dora Jobim) e “A Luz do Tom” (2012). Em 1999, o encontrei brevemente do outro lado do mundo, no principal evento asiático dedicado à não-ficção, presidindo o júri do Festival Internacional de Documentários de Yamagata, no Japão. Seu renome há muito era universal.
No Twitter, Sergio Augusto resumiu numa frase a importância histórica de Nelson Pereira dos Santos: “o pai do cinema moderno brasileiro”. Sua obra liga a produção independente dos anos 1950 em oposição ao modelo industrial da Vera Cruz à retomada na era Ancine deste começo do século 21.
A cada década desde então, Nelson marcou a cinematografia brasileira, não raras vezes com mais de um filme luminoso. Adaptações literárias foram uma âncora segura de sua filmografia, a partir sobretudo de Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1964, e Memórias do Cárcere, 1984), mas também de Jorge Amado (Tendas dos Milagres, 1977, e Jubiabá, 1987) e Guimarães Rosa (A Terceira Margem do Rio, 1994), para não falar de sua subestimada versão para “Boca de Ouro” (1962), de Nelson Rodrigues, relançada recentemente em caixa pela Bretz. Filmes. Nada mais natural que, em 2006, tenha Nelson se tornado o primeiro cineasta a ingressar na Academia Brasileira de Letras.
Assumidamente influenciado pelo neo-realismo italiano, o cinema de Nelson Pereira dos Santos insuflou vida, concretude, realidade social, ao nosso cinema. Seus dois primeiros longas-metragens, “Rio, 40 Graus” (1954) e “Rio, Zona Norte” (1957), captaram para a tela a aspereza e o lirismo do mundo real da então capital da República com um vigor que tornaria datado toda a produção que imediatamente os precedera: o das chanchadas e o da Vera Cruz.
Quando fez o mesmo com nosso sertão em “Vidas Secas”, já não estava sozinho, acompanhado por todo o movimento do Cinema Novo. Não à toa, Nelson se declarava “pré” e “pós” Cinema Novo e sintetizou magistralmente: “Cinema Novo é Glauber (Rocha) no Rio”.
Com o fim do movimento, grosso modo a partir da decretação do AI-5 em dezembro de 1968, teve inicio o que chamava seu “período Paraty”, marcado por produções modestas improvisadas na região da célebre cidade fluminense (Fome de Amor, 1968, Azyllo Muito Louco, 1970, Quem É Beta?, 1972), tendo no meio do caminho sua reinterpretação dos primórdios de nossa história colonial com o surpreendente sucesso popular de “Como Era Gostoso Meu Francês” (1971).
Nos anos 1970 e 80, na chamada era Embrafilme, a obra de Nelson se abre para o misticismo e a cultura popular, escorado por bases produtivas mais sólidas, como se constata em “Tendas dos Milagres” e “Na Estrada Da Vida com Milionário e José Rico” (1980). Ainda assim, nos interstícios de elenco, dramaturgia e cenografia profissionais, sente-se o sopro do real. E seu retorno a Graciliano em “Memórias do Cárcere” representa a metáfora ficcional definitiva da resistência democrática à outra ditadura, a militar de 1964, então em seu ocaso.
A derrocada da produção cinematográfica com a era Collor (1990-1992) golpeou de forma inegável a filmografia ficcional de Nelson, reaproximando-o do documentário. Sua produção mais marcante nos anos 2000 são dois pares de retratos dedicados a intérpretes do Brasil, como Nelson também o foi: Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) e Tom Jobim (1927-1994).
Um mesmo dispositivo de base: dípticos estruturados um a partir de entrevistas e outro a partir da própria obra de seu personagem. Co-realizado com a jovem Dora Jobim, o primeiro longa sobre o maestro, “A Música Segundo Tom Jobim”, reafirmou a capacidade inventiva do já octagenário cineasta, numa jornada hipnótica pelas imagens e sons embalados por pura música. Algo me dizia, naquela outonal noite de sábado, que Nelson Pereira dos Santos não morreu. .