Por Amir Labaki
Não se vai muito longe se se
pretende examinar apenas em registros cinematográficos os
acontecimentos de 1968 no Brasil. Mesmo passado meio século, é quase
inexistente a filmografia documental sobre “o ano que não terminou”,
segundo a definição de Zuenir Ventura no subtítulo de sua ainda
insuperada narrativa jornalística daquele cruel ano em nosso país.
As especificidades nacionais
das revoltas de 1968 refletem-se na cinemateca daquela era em cada
país. “No Intenso Agora” (2017), de João Moreira Salles, ilustra isso
didaticamente, sobretudo ao contrapor a catarata de filmagens de
variadas origens e intenções na França e o caráter episódico e
fragmentário, amador e temeroso, dos registros feitos da repressão da
Primavera de Praga na Tchecoslováquia.
A extensa produção
cinematográfica francesa imediatamente posterior àquele maio mítico,
revisitada por “No Intenso Agora”, continuou a crescer a cada celebração
de uma nova década vencida, em filmes e especiais para cinema e para a
TV. Um das sessões especiais do corrente É Tudo Verdade 2018 destaca
exatamente “68”, um documentário de arquivo dirigido por Patrick Rotman
para marcar há dez anos os 40 anos das revoltas.
Rotman reconstitui o fluxo
dos protestos que correram o planeta durante todo ano, dos EUA ao Japão,
da França ao Brasil, da Itália ao México. “Esta força nova que
representa a juventude é um fator essencial para compreender 1968 pelo
mundo”, defendeu o historiador e cineasta em 2008 à época do lançamento.
Após as projeções especiais
nesta semana em São Paulo e no Rio, “68” também será exibido no final de
abril em Brasília, numa parceria do festival com o consulado francês.
Nada mais adequado pois radiografa a repressão militar exatamente aos
estudantes brasilienses o principal documentário nacional dedicado
àquela época, “Barra 68 – Sem Perder a Ternura” (2001), de Vladimir
Carvalho.
Em 29 de agosto de 1968,
tropas do Exército invadiram a UnB em busca de militantes do movimento
estudantil. O jovem Hermano Penna, então estudante da universidade e
futuro diretor do clássico “Sargento Getúlio” (1983), agilmente
registrou a invasão, mas os cerca de sete minutos então filmados
perderam o ineditismo apenas em 2001 quando recuperados pelo
documentário de Vladimir Carvalho.
O impulso documental de
Penna fora antecedido meses antes por pulsões similares e independentes,
no Rio de Janeiro, de José Carlos Avellar (1936-2016) e de Eduardo
Escorel para registrar duas das mais marcantes manifestações contra a
ditadura militar. Avellar filmou tanto o velório do estudante Edson Luís
de Lima Souto, morto pelas tropas que invadiram em 28 de março o
restaurante estudantil Calabouço, quanto a Passeata dos Cem Mil,
realizada em 26 de junho.
Em seu blog na revista
piauí, Escorel relembrou há duas semanas as circunstâncias precisas de
suas filmagens, então aos 22 anos, do velório, do cortejo fúnebre
seguido por estudantes e artistas e do enterro de Edson Luís no
Cemitério São João Batista. O material bruto de pouco mais de 13
minutos, lembra ele, “não foi editado ou incluído em filme”. Depositado
por ele na Cinemateca do MAM, em 1969, por 44 anos julgou-se extraviado.
Ainda assim, nem Escorel sabe como, o registro chegou às mãos de Chris
Marker (1921-2012), que no ano seguinte utilizou trechos em seu “On Vous
Parle du Brésil: Carlos Marighella”.
Em seu breve capítulo
brasileiro, “No Intenso Agora” apresenta cenas das filmagens de Avellar e
de Escorel. Em seu texto, este informa da existência de breves
registros televisivos do enterro de Edson Luís feitos pela TV Tupi e por
agências internacionais de imagens. Reconheça-se, não é muito.
Nosso longo e asfixiante 1968 se encerraria simbolicamente com a consolidação da guinada autoritária pela edição do AI-5 em 13 de dezembro.
Apenas um registro sonoro sobreviveu da fatídica reunião do Conselho de
Segurança Nacional que o referendou, fechando o Congresso, arrochando a
censura, suspendendo o “habeas corpus” e outras garantias
constitucionais, para ampliar o espectro de prisões, cassações e
demissões.
Apenas em 1o de
janeiro de 1979 o AI-5 seria revogado, assim como os demais atos
institucionais, como parte da política de abertura lenta e gradual do
general-presidente Ernesto Geisel (1907-1996). Em plena ditadura, um
documentário sobre nosso 1968 era mesmo impossível. Superada esta, a
partir de 1985, segue um desafio ainda a nos rondar.