Por Amir Labaki
Para esta temporada de festas e (aos felizardos) de férias, é hora de recomendar um quarteto de filmes já disponíveis para assistir em casa ou no retiro de verão. São quatro documentários sobre escritores, dois brasileiros, dois americanos, os primeiros disponíveis pelo Now, os outros pela Netflix.
Lançado no É Tudo Verdade de 2016, “Cacaso na Corda Bamba”, de José Joaquim Salles e PH Souza, é um filme amoroso, gregário, anedótico e bem-humorado como a obra de seu personagem. Cacaso era o “nom de plume” do poeta, crítico e letrista Antônio Carlos de Brito (1944-1987), cuja morte surpreendente completa já trinta anos neste dia 27.
Nascido em Minas mas carioca por opção, com seu estilo coloquial e epigramático Cacaso foi ao lado de Ana Cristina César, Chacal e Charles Peixoto, entre outros, um dos principais nomes da chamada poesia marginal surgida nos Rio de meados dos anos 1970. Apoiado num registro amador de um debate com ele e em entrevistas com amigos e familiares, “Cacaso na Corda Bamba” recupera sua biografia e seu desenvolvimento artístico. É um convite irresistível para lê-lo ou relê-lo, como você pode conferir nesta segunda (25) em nosso programa às 22h no Canal Brasil.
Outro trigésimo aniversário, este a celebrar, com festança hoje (22) em Porto Alegre, é o da produtora gaúcha Casa de Cinema. Formada entre outros por Ana Luiza Azevedo, Giba Assis Brasil, Jorge Furtado e Nora Goulart, é um marco no audiovisual brasileiros, em vários sentidos.
A Casa de Cinema estabeleceu fora do eixo Rio-São Paulo uma dos mais originais polos nacionais de produção para cinema e para TV (do Urso de Ouro de curta a “Ilha das Flores”, 1989, ao Emmy em 2015 à telessérie global “Doce de Mãe”), prenunciando uma saudável descentralização fortalecida no século 21. Longeva e plural, rompeu ainda com a saga fragmentária da história do cinema no Rio Grande do Sul.
Neste ano, Jorge e Ana Luiza lançaram no É Tudo Verdade o terno e originalíssimo “Quem É Primavera das Neves”. Hoje, para responder à pergunta, basta recorrer à Wikipedia; há mais de meia década, quando Jorge procurou saber, ao topar com o enigmático e poético nome da tradutora num volume de Lewis Carroll, sua indagação numa postagem em seu blog desenrolou um novelo que resultou no filme.
Primavera das Neves, aliás Primavera Ácrata Saiz das Neves (1933-1981), foi uma delicada tradutora e escritora portuguesa que desde a adolescência viveu no Brasil, com um pequeno interregno para sua vida de casada em Portugal (1959-1962) com um militante anti-salazarista. Retomando a problematização do anonimato de um de seus documentários curtos mais sutis, “Esta Não É Sua Vida” (1991), Jorge, ao lado de Ana Luiza, realizou um das mais belas celebrações recentes do amor à literatura em nosso cinema.
Por sua vez, todo mundo que se interessa por livros, ao menos nos EUA, conhece Joan Didion. Aos 83 anos, alternando-se por quase meio século entre o romance (Democracia) e a não-ficção (O Álbum Branco), Didion consagrou-se definitivamente com um par de dilacerantes volumes autobiográficos, “O Ano do Pensamento Mágico” (2005) e “Noites Azuis” (2012), sobre as perdas sucessivas de seu marido, o escritor e roteirista John Gregory Dunne (1932-2003), e da filha, Quintana (1966-2005).
Ácida, assertiva e personalíssima em seus escritos, Joan Didion driblara olimpicamente as câmeras até ceder frente a seu sobrinho, o ator e cineasta Griffin Dunne (o astro de “After Hours”, 1985, de Scorsese). “Joan Didion – The Center Will Not Hold” tem a generosidade no acesso aos arquivos e a intimidade mas também a deferência da maioria das biografias em família. A vida se sobrepõe à obra, mas que vida!, e instantes desarmados, como o que flagra a euforia politicamente incorreta de Didion ao lembrar o encontro com uma menina de 5 anos viajando de LSD na São Francisco hippie de fins dos anos 1960, a revelam mais do que todos os testemunhos somados.
Tendo ao centro o lendário Gay Talese (O Reino e o Poder), um dos mestres do jornalismo literário americano, e por modelo os thrillers do real de Errol Morris, “Voyeur” de Myles Kane e Josh Koury longe está de perfeito. Mas se torna fascinante quando o que seria originalmente uma espécie de “making of” de mais um potencial clássico, sobre os diários de um “voyeur” compulsivo disfarçado em dono de hotel, é virado de cabeça para baixo.
Rombos na apuração e mentiras de seu protagonista torpedeiam o lançamento da reportagem em livro (“O Voyeur”, Companhia das Letras, 269 págs, 2016), depois de já estampada numa capa da “New Yorker”.
O dândi Gay Talese torna-se simbolicamente o último a ser flagrado com as calças ao chão. Nova velha história, o feitiço se voltou contra o feiticeiro.
Divirta-se, boas festas e até fevereiro!