Por Amir Labaki
Ao contrário da última disputa, não há um franco favorito entre os 15 semifinalistas para o Oscar de documentário de longa-metragem a ser entregue em 4 de março próximo. Mesmo no heterodoxo formato de suas quase sete horas divididas em cinco partes, “O.J.: Made in America” de Ezra Edelman era barbada para o prêmio em 2017. Nada similar se encontra na equilibrada lista anunciada no último dia 8, a ser afunilada para cinco concorrentes no anúncio das indicações de 23 de janeiro.
A relação traz poucas obras de maior ousadia formal mas se destaca pelo foco em questões da hora. Apenas uma dupla de diretores concorrentes, Daniel Lindsay e T.J. Martin de “LA 92”, já levou o Oscar da categoria (Undefeated, 2011). E dois dos indicados já receberam Oscars honorários, o americano Frederick Wiseman (Ex-Libris: Biblioteca Pública de Nova York) e a premiada neste ano, a francesa Agnès Varda (Visages, Villages, co-direção de JR).
Do trio de títulos dedicados a questões ambientais, um dá continuidade a um documentário duplamente premiado pela Academia. Já em cartaz e comentado nesta coluna, “Uma Verdade Mais Inconveniente”, de Bonni Cohen e Jon Shenk, retoma uma década mais tarde a militância de Al Gore contra o aquecimento global, retratada pioneiramente por “Uma Verdade Inconveniente” (2007) de Davis Guggenheim.
A mesma preocupação com o impacto das mudanças climáticas orienta “Em Busca dos Corais”, de Jeff Orlowski. Por sua vez, “Jane” trata de passagem da luta pela preservação de espécie em extinção, a partir de um retrato particularmente intimista da primatóloga britânica Jane Goodall, possibilitado devido às extraordinárias filmagens de seu cotidiano e de seu pioneiro trabalho com chimpanzés da Tânzania por seu primeiro marido, o documentarista Hugo Van Lawick (1937-2002).
Tema central de “O.J.: Made in America”, os conflitos pela afirmação dos direitos dos afro-americanos marcam vigorosamente “LA 92” e “Strong Island”, do diretor transsexual Yance Ford. “LA 92” reconstitui exclusivamente com imagens de arquivo a explosão de violência em Los Angeles a partir da absolvição em 1992 dos policiais brancos perpetradores do espancamento do afro-americano Rodney King (1965-2012) no ano anterior.
Outro episódio de racismo institucionalizado no sistema judicial americano está ao centro de “Strong Island”. Com notável contenção formal, Yance Ford reconstrói o assassinato jamais levado a julgamento de seu irmão mais jovem no interior de uma garagem em Long Island, no estado de Nova York, em 1992.
Num ano de grandes documentários sobre a guerra civil na Síria, dois títulos emplacaram vagas entre os semifinalistas. Exibido na abertura paulista do É Tudo Verdade 2017, “Cidade de Fantasmas” de Matthew Heineman acompanha a batalha, pela sobrevivência e pela informação, de um grupo de ativistas-jornalistas de Raqqa, cidade tomada pelo Exército Islâmico em 2014. Dirigido por Firas Fayyad e Steen Johannessen, “Os Últimos Homens em Aleppo” segue o heroico cotidiano de três membros da equipe de resgates “Capacetes Brancos” na luta pela salvação de vidas entre os escombros e o caos.
A busca de uma nova casa pelos milhões de refugiados sírios destaca-se entre vários dos episódios mais marcantes de “Human Flow: Não Existe Lar Se Não Há Para Onde Ir”, rodado em quatro continentes pelo chinês Ai Weiwei. Outra crise global, a financeira detonada a partir de 2008, tem suas repercussões flagradas por meio da história do processo contra um modesto banco nova-iorquino de imigrantes chineses em “Abacus: Pequeno O Bastante para Condenar”, de Steve James.
Dois documentários destacam-se pelo extraordinário acesso a protagonistas em situações de crise. Em “Ícaro”, já resenhado aqui, o diretor Bryan Fogel iniciou um filme sobre as possibilidades de doping no ciclismo amador e terminou com a mais reveladora –e pioneira- narrativa da utilização de doping pelos russos durante a Olímpiada de Inverno em Sochi em 2014, como descrita por um de seus executores, Grigory Rodchenkov. Já “Um de Nós” lança raras luzes sobre o radical insularismo da comunidade judaica hassídica nos EUA a partir da batalha de três jovens, Etty, Ari e Luzer, para dela desligar-se.
Por fim, dois subgêneros de tradição na disputa, o musical e o médico, mais uma vez se fazem presentes, respectivamente com “"Long Strange Trip: A Viagem do Grateful Dead", de Amir Bar-Lev, e pelo autobiográfico “Unrest”, em que a cineasta Jennifer Brea documenta sua luta contra a síndrome da fadiga crônica.
Comprovando a mudança dos tempos, apenas três dos quinze semifinalistas não foi ainda exibido no Brasil, seja em festivais, pelo circuito ou em plataformas digitais. Quatro deles você pode assistir mesmo sem sair de casa pelo Netflix: “Em Busca dos Corais”, “Ícaro”, “Strong Island” e “Um de Nós”. O documentário ficou mesmo mais perto de nós.