Ao mesmo tempo que a produção documental brasileira marcava forte presença na 30a edição do IDFA –Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, que se encerra neste domingo (26), outro artista nacional, Cao Guimarães, divide até
3 de dezembro uma exposição no EYE - Museu do Cinema com o tailandês Apichatpong Weerasethakul. Entitulada “Locus”, reúne filmes e instalações, com curadoria de Jaap Guldemond. Cada um deles ocupa três salas consecutivas no EYE, abrindo-se com as dedicadas a Guimarães.
Duas constatações iniciais levaram Guildemond a colocar lado a lado o vencedor da Palma de Ouro de Cannes 2010 com “Tio Boonmee, Que Recorda as Suas Vidas Passadas” e o duplamente vitorioso no É Tudo Verdade (com o longa “A Alma do Osso”, em 2004, e o curta “Da Janela do Meu Quarto”, em 2005). “Para estes dois artistas não há fronteira entre cinema e artes visuais”, diz o curador num vídeo ao fim da exposição. “Ambos fazem um zoom sobre a vida local, alcançando assim alguma coisa de universal”.“Locus”, portanto, o título. O habitat de Apichatpong é o nordeste da Tailândia, sendo Minas Gerais o de Cao, embora a obra deste tenha se desenvolvido de fato numa esfera mais ampla, da Inglaterra ao Uruguai. Sua produção mantém, contudo, o foco sobre o que Guildemond com felicidade define como “micro-eventos”: dois garotos brincando na chuva, um bolha errante pelo quarto, confetes carnavalescos alegrando formigas.
Vistas em conjunto as obras dos dois, saltam aos olhos tanto o que as aproxima quanto o que as individualiza. Uma espécie de surrealismo budista é a base da transcendência por adição de Apichatpong, enquanto o minimalismo o é para a transcendência por subtração de Cao.
Em obras como a série “Primitive” (2009) e “Fireworks” (2014), o multiartista tailandês não hesita em intervir sobre o real, adicionando-lhe camadas com modestos efeitos especiais, personagens verdadeiros e míticos, relâmpagos e cores. Já o brasileiro, como vemos em “Da Janela do Meu Quarto” e “Limbo”(2011), assume uma estética espartana, concentrando a atenção e eliminando o supérfluo, com uma renúncia cada vez mais marcada de qualquer alteração sobre o material bruto.
Percorrendo “Locus”, mesmo com Apichatpong extrapolando mais do que Cao o figurino de cineasta do real, pensei que a exposição se encaixaria sem problemas na programação do IDFA dedicada a documentários extracinematográficos. Não é coincidência que, exatamente nesta 30a. edição, sob curadoria da multiartista Barbara Visser, pela primeira vez a principal retrospectiva autoral seja dedicada a um artista da internet como Jonathan Harris.
O leitor pode conhecer parte de sua produção e de seus escritos visitando o site em
http://number27.org/works. Convidado a compor a lista dos Top Ten deste ano, como anteriormente já o fizeram Herzog, Kieslowski e João & Walter Moreira Salles, Harris estabeleceu a mais heterodoxa seleção da história do ciclo, reunindo documentários (Koyanisqatsi, 1982) e ficções (A Montanha Sagrada, 1973), podcasts (Sonic Ids, 2001) e simplesmente todo o YouTube.
Assim como o EYE justapôs as obras de Apichatpong Weerasethakul e Cao Guimarães, o IDFA 2017 acolhe simultaneamente Jonathan Harris e um dos maiores documentaristas em atividade, Frederick Wiseman, que aos 87 anos veio apresentar seu extraordinário “Ex-Libris –Biblioteca Pública de Nova York”, já comentado nesta coluna. São ambos criadores a partir do real, mas enquanto o primeiro investiga a explosão da autoria e da obra fechada, o segundo foi e é essencial para a consolidação do cinema não-ficcional como arte autônoma.
Despedindo-se do festival que criou, Ally Derks recordou, em almoço em sua homenagem no último sábado, como a presença de Wiseman emprestou autoridade à edição inaugural do evento. Trinta anos passados, mais de duas dezenas de filmes depois, quase tantas visitas dele aos novembros de Amsterdã, ei-lo aqui mais uma vez. Muito se indagou neste IDFA sobre os futuros do documentário, mas o belo é testemunhar que um raro círculo virtuoso agora se fechou.