Por Amir Labaki
Paulo Francis (1930-1997), então correspondente da “Folha” em Nova York, sacou na hora. Um novo documentário, produzido pela CNN Films, radiografa agora a importância da telegenia para o sucesso político de Ronald Reagan (1911-2004) na Presidência dos EUA (1981-1989).
Lançado no Tribeca Film Festival e programado para a 41a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo a partir da próxima semana, “The Reagan Show” desconstrói a administração do ex-astro hollywoodiano a partir exclusivamente de material de arquivo audiovisual. Para tanto, apoiando-se apenas em cartelas econômicas, sem narração “off”, os diretores Pacho Velez e Sierra Pettengill recorrem tanto à cobertura telejornalística quanto ao extenso registro oficial feito pela White House TV. Devido ao então recente desenvolvimento tecnológico, este acervo supera a soma do de seus cinco antecessores.
Numa coluna para a “Folha” em 1984, Francis recordava como, a partir do triunfo de John Fitzgerald Kennedy (1917-1963) no pioneiro debate televisivo que em 1960 o opôs a seu oponente republicano Richard Nixon (1913-1994), dominar a “linguagem de TV” se tornou essencial para a ascensão política nos EUA. “Reagan é craque nisso”, sustentou.
“The Reagan Show” defende a mesma tese, com um olho neste passado recente e outro na presente era do Trump Show. O paralelo é frisado logo nos primeiros minutos, quando num discurso para uma organização sindical, durante sua campanha presidencial em 1980, Reagan afirma a importância de “Make America Great Again”, lançando o “motto” que seria roubado pela campanha de Donald Trump.
Na cena inicial, extraída da entrevista final na Casa Branca conduzida pelo âncora David Brinkley (1920-2003), o próprio Reagan articula a importância da arte da representação para a política e pressagia o novo paradigma: “Houve momentos, neste cargo, em que eu ponderei como você poderia fazer este trabalho se não foi antes um ator”.
Velez e Pettengill infelizmente não dedicam muito tempo a examinar a carreira de Reagan, limitando-se a uma rápida montagem de cenas dos principais títulos de sua filmografia de 53 títulos. Teria sido didático, até para matizar a comparação frente à total inexperiência prévia de Trump na gestão pública, reconstituir sua empenhada transição de ator para político, sacramentada por sua eleição para governador da Califórnia em 1966, cargo que exerceu com sucesso por dois mandatos.
Mas “The Reagan Show” são os oito anos de sua Presidência. A encenação é o jogo, explica Michael Deaver (1938-2007), um de seus auxiliares mais próximos, à repórter Bárbara Walters. O documentário lembra as discussões da época, aqui constantemente reportadas por Francis, do exagerado empenho de Reagan na construção de sua imagem pública em detrimento da gestão cotidiana do país.
Fato é que Reagan venceu. Até sucessores democratas no cargo, como Bill Clinton e Barack Obama, reconheceram-no publicamente como um dos grandes líderes americanos do século 20. O documentário contudo não se detém muito em suas realizações internas, como o robusto crescimento econômico e a recuperação da autoridade da Presidência após a falência moral da renúncia de Nixon em 1974, priorizando o front internacional.
O centro do filme é o braço-de-ferro simbólico entre Reagan e Mikhail Gorbatchev, que em 1985 se tornou o último líder da URSS. A ascensão de Gorbatchev estabeleceu um duelo público de carismas, correndo ao fundo uma nova aceleração da corrida armamentista com o projeto “Guerra das Estrelas” de Reagan.
Naquele capítulo final da Guerra Fria, Gorbatchev pode ter saído como o vitorioso das cúpulas com Reagan em Genebra (novembro de 1985) e Reykjavik (outubro de 1986), mas nada compara-se, no grande álbum da história, ao épico discurso do presidente americano em junho de 1987, no Portão de Brandenburgo da Berlim então dividida, demandando: “Mr. Gorbatchev, ponha abaixo este muro”. Demorou pouco mais de dois anos, para festa de um Reagan já de pijama em seu retiro californiano, tendo feito como sucessor em 1989 seu opaco vice, George H. W. Bush.
“O político que não aprender a se comportar no vídeo está condenado ao esquecimento”, concluía Francis na citada coluna de 1984. O encerramento de “The Reagan Show” o atualiza, invertendo o argumento, a partir de um comentário do âncora Peter Jennings (1938-2005) às vésperas da aposentadoria de Reagan: “Nenhuma presidência antes desta foi tão frequentemente julgada como se fosse uma arte performática. Tremo quando se sugere que políticos que virão depois dele terão de ter sucesso primeiro na televisão”.
Felizmente, Donald Trump parece empenhado em que a profecia se esgote em sua primeira concretização.