Por Amir Labaki
O fortalecimento contemporâneo da bibliografia sobre o cinema documentário, paralelo ao revigoramento do gênero nas últimas décadas, conhece um novo marco com a publicação da edição brasileira de “América Latina em 130 Documentários”, de Jorge Ruffinelli (É Realizações, 416 págs, R$ 89,90). Lançado originalmente em 2012 no Chile, o volume representa a mais ampla introdução à produção não-ficcional na região desde que Paulo Paranaguá, crítico brasileiro radicado em Paris, publicou em 2003, em parceria com o Festival de Cinema de Málaga, na Espanha, a antologia “Cine Documental en América Latina” (Ediciones Cátedra, 540 págs.), infelizmente nunca editada no Brasil.
Uruguaio de nascimento, crítico literário de origem, Ruffinelli leciona há três décadas na universidade americana de Stanford, tendo os filmes suplantado os livros como foco preferencial de sua fina análise. A produção ficcional e a documental dividem-lhe a atenção, como prova a publicação por ele de duas monografias sobre cineastas, o cubano Fernando Pérez (2005) e o chileno Patrício Guzmán (2008). Tanto é assim que dois anos antes de lançar o dicionário de documentários, publicou um de filmes latino-americanos de ficção, pela mesma Uqbar Editores chilena.
Os volumes de Paranaguá e Ruffinelli guardam em comum a preocupação com um arco produtivo abarcando do documentário silencioso à produção contemporânea, uma generosa abrangência de nacionalidades dos filmes e autores examinados e o notável conhecimento por ambos das histórias dos países latino-americanos. “Cine Documental en América Latina” inicia-se com uma introdução histórica e historiográfica de Paranaguá para dividir-se a seguir em três partes, duas das quais redigidas por uma série de especialistas (incluindo o próprio Ruffinelli e este colunista) e dedicadas a análises específicas das trajetórias de grandes documentaristas e à dissecação de títulos clássicos, e outra formada por textos reflexivos de alguns dos principais realizadores, como Alberto Cavalcanti, Fernando Birri, Santiago Alvarez e até uma raríssima contribuição de Eduardo Coutinho.
“América Latina em 130 Documentários”, por sua vez, compõe-se com um breve prólogo de Ruffinelli, seguindo-se 130 verbetes críticos quase simétricos, cada qual ocupando três páginas de livro, incluindo foto e ficha técnica, todos de autoria do crítico uruguaio. Em certeira decisão editorial, a equipe de tradutores, coordenada por Rita de Cássia M. Diogo, manteve os títulos originais sem tradução.
O volume inicia-se em 1928 com o curta documental chileno “El Corazón de Una Nación”, de Edmundo Urrutia, sobre a capital Santiago, e encerra-se em 2012 com o também chileno “Sibila”, de Teresa Arredondo, uma pesquisa familiar da cineasta sobre a tia condenada à prisão por seu vínculo com a organização terrorista peruana Sendero Luminoso. As escolhas referendam as etapas históricas do documentário latino-americano segundo o prólogo de Ruffinelli, primeiramente antropológicos, a seguir politicamente engajados até chegar ao “documentário subjetivo ou pessoal” do século 21.
Um interessante critério de seleção por Ruffinelli é a escolha de apenas um título por realizador. A decisão enriquece o livro ao expandir o número de cineastas analisados. Ruffinelli faz dessa obstrução auto-imposta fator de complexidade argumentativa, quando por exemplo examina a contribuição do cubano Santiago Álvarez à luz da escolha de “Hanói Martes 13” (1966), mas por vezes sofre com ela, sobretudo ao ver limitadas as discussões sobre os posteriores desdobramentos das obras do chileno Patrício Guzmán e do brasileiro Eduardo Coutinho para além dos marcos de “La Batalla de Chile” (1974-1979) e “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), sem embargo do brilho das análises específicas.
Brasil, Argentina, Chile e México são as cinematografias com maior número de títulos resenhados. Ruffinelli mostra-se criterioso também na análise de obras de pólos de menor tradição, examinando contribuições por exemplo de El Salvador (Alejandro), Nicarágua (La Isla de Los Niños Perdidos) e Paraguai (Tierra Roja).
O recorte temporal não segue similar equilíbrio, privilegiando a produção a partir dos anos 2000 (70 títulos) frente a todo o período anterior (60). A opção fortalece o volume quanto ao exame do revigoramento do documentário latino-americano a partir da revolução digital mas o faz em detrimento de essenciais marcos históricos, notadamente pela exclusão de clássicos como “No País das Amazonas” (1921) de Silvino Santos e Agesilau de Araújo, “Ao Redor Do Brasil” (1932), do major Luiz Thomaz Reis, e “Di” (1977), de Glauber Rocha, para ficar apenas no âmbito nacional.
É natural que a elegância, a perspicácia e a erudição de cada verbete de “América Latina em 130 Documentários” nos façam querer mais. Resta-nos esperar, impacientes, a conclusão por Jorge Ruffinelli da enciclopédia do documentário latino-americano à qual já se dedica.