Por Amir Labaki
"Balas Contra A Gestapo” (All Through the Night, 1942) era uma das lacunas de minha filmografia bogartiana até finalmente descobri-lo, não numa reprise regular nos cinemas de repertório de Paris, mas sim entre os recentes lançamentos em DVD por aqui (Rimo Entertainment, R$ 34,90). Como o óbvio título nacional adianta, evidentemente não é um documentário. Nem propriamente é um bom filme, quanto mais um clássico, mas documenta bem várias dinâmicas da Hollywood da época e deixa-se ver com enorme prazer, como os bons filmes ruins.
Rodado pelo artesão Vincent Sherman (1906-2006) em 1941, ainda antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra a partir do ataque a Pearl Harbor, não deixa dúvidas da liderança da Warner Bros. entre os estúdios quanto ao engajamento de sua produção no esforço antinazista. Enquanto Louis B. Mayer da Metro-Goldwyn-Mayer ainda admoestava William Wyler sobre a antipatia do único soldado alemão retratado em “A Rosa da Esperança” (1942), para ficar num exemplo, os irmãos Warner já tinham colocado sua máquina de produção em pleno alinhamento com a intenção do presidente Franklin D. Roosevelt (1882-1945) de engajar plenamente o país no combate ao Eixo.
Como o pioneiro “Confissões de Um Espião Nazista” (1939), dirigido para a Warner pelo refugiado judeu ucraniano Anatole Litvak (1902-1974), “Balas Contra a Gestapo” denunciava e combatia a disseminação de agentes e simpatizantes hitleristas pelo território americano. O entrecho do filme de Litvak, também disponível em DVD, envolvia a infiltração da Federação Germano-Americana por um agente do FBI. Naquele mesmo ano, a mesma associação havia lotado com 20 mil pessoas o Madison Square Garden de Nova York exigindo a neutralidade americana e atacando “Roosenfeld” e seu “Jew Deal”. Ao centro do palco, uma bandeira ostentava uma suástica, o mesmo símbolo que reapareceu nas manifestações de extrema-direita de Charlottesville, na Virgínia, na semana passada.
O enredo de “Balas Contra a Gestapo” acompanha, por sua vez, uma corrida contra o relógio para abortar um grande atentado, com alvo desconhecido, planejado por uma célula nazista em Nova York. Coube a ninguém menos que Conrad Veidt (1893-1943), o sonâmbulo assassino de “O Gabinete do Dr. Caligari” (1920), também exilado, interpretar o cabeça dos sabotadores alemães, Ebbing. Chefiando sua perseguição, estava, claro, Humphrey Bogart (1899-1957).
O duelo nas telas deu tão certo que no ano seguinte a Warner repetiria a fórmula em “Casablanca”, com Veidt como o chefe local da Gestapo, major Strasser, e Bogart, todos sabem, vivendo o expatriado americano Rick. Nenhum papel rivaliza-se a este na perpetuação do mito bogartiano, nem mesmo o anterior Sam Spade de “Relíquia Macabra” (1941) adaptado por um estreante John Huston do policial “O Falcão Maltês” de Dashiell Hammett, mas o ‘Gloves’ Donahue de Bogart em “Balas Contra a Gestapo” representa um importante marco simbólico na gênese da lenda.
Donahue sintetiza a corrente anterior e a imediatamente posterior de personagens de Bogart. É a um só tempo um gângster, como tantos na irregular carreira do ator pré-1941 (“Beco Sem Saída”, “Seu Último Refúgio”), e um herói cético mas vigoroso no combate aos nazistas, como se seguiria em “Garras Amarelas” (1942), “Casablanca”, “Comboio Para O Leste” (1943), “Sahara” (1943), e “Passagem para Marselha” (1944). Spade e Rick são anti-heróis com princípios; Donahue é único como gângster que se engaja voluntariamente na batalha justa.
O filme de Sherman confirmaria ainda a química cinematográfica entre Bogart e Peter Lorre (1904-1964), outro refugiado judeu, de origem austro-húngara. Foi a segunda das cinco vezes em que dividiram as telas de cinema, melhores amigos desde que John Huston (1906-1987) os escalara em campos opostos em “Relíquia Macabra”.
Se o detetive Spade salvou Bogart dos papéis de gângster, Joel Cairo, o afetado punguista de Lorre, alforriou este por uns tempos do papéis de estrangeiros caricatos a que os estúdios o haviam condenado desde sua chegada em 1935. Em “Balas Contra a Gestapo”, o protagonista do clássico “M, O Vampiro de Dusseldorf” (1931) interpreta outro vilão coadjuvante, Pepi, um cruel e sarcástico faz-tudo nazista.
Não havia papel pequeno demais para Lorre brilhar. Em suas memórias, o diretor Sherman conta como nasceu de uma ideia do ator sua inesquecível entrada em cena, comendo pipoca enquanto achaca um velho confeiteiro. Há mais sutileza e vivacidade naquela performance do que em qualquer momento do muito mais exuberante “Dunkirk”, de Christopher Nolan. Como testemunhou Norma Desmond, foram os filmes que encolheram.