Por Amir Labaki
Nunca subestime a importância dramática do acaso para a produção de documentários. “Ícaro”, de Bryan Fogel, é a mais recente prova, como se pode checar na grade do Netflix desde o começo do mês.
Vencedor do prêmio especial do júri na competição americana do Sundance Festival deste ano, a estreia em não-ficção de Fogel (Jewtopia, 2012) era originalmente uma variante, para o universo dos esportes, de “Super Size Me - A Dieta do Palhaço”(2004) de Morgan Spurlock. Experiente ciclista amador, Fogel decidiu experimentar o efeito do doping em sua própria performance e checar a possibilidade de driblar os mecanismos de controle na tradicional prova não-profissional Haute Route na Suiça.
O gatilho para transformar seu próprio corpo em laboratório foi o maior escândalo de doping da história do ciclismo profissional, que levou em 2012 à cassação das sete vitória no Tour de France do americano Lance Armstrong. Para assessorá-lo, Fogel inicialmente procurou Don Catlin, fundador do laboratório de testes de drogas da UCLA.
Catlin se interessou pelo projeto mas acabou se eximindo de participar, indicando um colega russo para a tarefa. Entrava em cena o verdadeiro protagonista de “Ícaro”: Grigory Rodchenkov.
Enquanto ajudava a orientar Catlin, via Skype, para a edição 2015 da maratona ciclística suíça, Rodchenkov era o diretor científico do laboratório russo anti-doping (Rusada), vinculado ao Ministério dos Esportes. Catlin e ele haviam se conhecido durante um período de estágio do russo nos EUA, ainda na era soviética.
Depois de uma acidentada participação na prova, Fogel voou para Moscou. Foi encontrar Rodchenkov, conhecer seu laboratório e ter lá testadas as amostras de urina colhidas durante os preparativos turbinados por drogas ilegais. Encontrou nervos à flor da pele, a partir da repercussão das denúncias de um documentário para a TV alemã sobre o uso institucionalizado de doping por atletas russos.
É neste ponto que “Ícaro” embala e transmuta-se de um filme de Spurlock para um thriller documental à moda Laura Poitras (Citizenfour). Dois meses após a visita de Fogel, em novembro de 2015, a Agência Mundial Antidoping (Wada) anunciou que investigações catalisadas pelo filme alemão levavam-na a recomendar a suspensão da participação de atletas russos em competições internacionais.
No dia seguinte ao anúncio, Rodchenkov renunciou ao cargo e começou a andar com seguranças. Logo pediu para Fogel ajudá-lo a fugir de Moscou rumo aos EUA, lá desembarcando com um HD de documentos.
Com isso, “Ícaro” conquista um exclusivo ponto de vista no olho do furacão do maior escândalo esportivo contemporâneo. Ao mesmo tempo que dá abrigo a Rodchenkov e o ajuda com a equipe do filme a desenvolver sua estratégia de defesa e segurança, Fogel o entrevista, colhendo em primeira mão o que a seguir seria reportado pelo The New York Times.
Segundo o cientista fugitivo, agora transformado em “whistleblower”, o programa russo de doping era comandado pelo presidente Vladimir Putin, por meio de um cadeia de comando que passaria pelo então Ministro dos Esportes, Vitaly Mutko, até alcançar, três elos abaixo, ao próprio Rodchenkov. Empenhado no sucesso da delegação nacional nas Olimpíadas de inverno de Sochi de 2014, Putin teria livrado Rodchenkov das acusações de comércio de drogas ilegais que o levaram à internação psiquiátrica após uma tentativa de suicídio em 2011. Desde ao menos 1968, sustenta ele, o uso de doping seria a norma, na então URSS como na posterior na Rússia.
Putin atribui tudo a “calúnias de um traidor”. Rodchenkov diz textualmente: “Putin vai me matar”. A câmera flagra seu desespero quando seu ex-superior hierárquico na Rusada, Nikita Kamayev, apareceu morto por um ataque cardíaco fulminante, aos 52 anos e sem histórico de cardiopatia, em fevereiro do ano passado.
“Ícaro” prossegue alternando-se entre a colaboração do delator com as autoridades americanas e olímpicas, sempre com ativa participação de Fogel, e as idas e vindas das autoridades esportivas internacionais, que acabaram liberando a participação da maioria dos atletas russos para os jogos no Rio-2016.
Desde julho passado, Rodchenkov teve de submergir, aderindo ao programa de segurança de testemunhas do governo americano. A mulher e os filhos que deixou em Moscou tiveram os passaportes confiscados. Em dezembro, suas denúncias precisas quanto aos métodos de violação dos exames antidoping pelos russos em Sochi foram confirmadas por um comitê especial da Wada.
Pouco antes, em outubro, Putin elevou Mutko a vice primeiro-ministro. Não é à toa que, como Fogel bem explora, o livro de cabeceira de Rodchenkov seja o “1984” de Orwell.