Por Amir Labaki
Vladimir Putin sorri muitas vezes durante os quatro episódios de “The Putin Interviews” (As Entrevistas Putin), de Oliver Stone. Também pudera. Stone não é páreo para ele, levantando bola atrás de bola para as cortadas do presidente russo.
Compreendem-se logo o jogo e o papel de cada um. Para Putin, oferecem-lhe um megafone sem precedentes para o público americano e internacional. Para Stone, no duplo papel de documentarista e contra-historiador, tudo vale para gravar o mais longo depoimento recente do maior nêmesis dos EUA.
Exibida pelo canal por assinatura americano Showtime em meados do mês passado, a série “The Putin Interviews” é a um só tempo frustrante e reveladora. Resulta de quatro viagens do cineasta à Rússia, entre julho de 2014 e fevereiro deste ano, que geraram cerca de 20 horas de material, editado temática e não cronologicamente para quatro programas de uma hora.
Grosso modo, o primeiro episódio dedica-se a reconstituir a carreira de Vladimir Putin, 64 anos, da infância modesta em São Petersburgo a 17 anos de poder autocrático na conturbada Rússia pós-soviética. O segundo privilegia questões de costumes, como o papel da Igreja Ortodoxa Russa no país hoje e a repressão ao homossexualismo, negada por Putin, sem enfrentar maior resistência.
Questões internas e internacionais mais espinhosas, como o conflito na Ucrânia, a guerra civil na Síria e as dificuldades econômicas russas após as sanções que se seguiram à anexação da Criméia em 2014, pautam o terceiro capítulo. Por fim, sentados frente à frente numa imponente sala no Kremlin para o último depoimento, o episódio final flana pelas acusações de interferência russa na última eleição presidencial nos EUA, pelos riscos da guerra cibernética e pela perspectiva de um quarto mandato de Presidente para Putin a partir de 2018.
A sucessão de encontros se espalhou entre distintos escritórios na sede do governo russo, a casa de Putin na periferia de Moscou, o balneário de Sóchi e um estádio de hockey no gelo onde o presidente participa de uma partida em maio de 2016. Além da equipe de filmagem e de assessores do presidente, as entrevistas têm por presença constante o ágil tradutor Sergei Churdinov.
Putin em nenhum momento parece incomodado ou pressionado a ponto de abandonar o figurino “paz e amor”. Sobre o passado, é interessante ouvi-lo sutilmente minimizando a importância da revolução de 1917 (reduzida a “golpe” na atual retórica oficial), defendendo a dimensão histórica de Stálin (1878-1953), comparado por ele ao britânico Oliver Cronwell (1599-1658), e poupando de críticas diretas o último líder soviético, Mikhail Gorbatchev, a quem elogia por ter percebido a urgência de mudanças no sistema, deixando implícita a condenação à direção efetiva tomada.
Inquirido sobre alguns temas contemporâneos controversos, mas não sobre a longa lista de opositores assassinados, Putin dá sua versão, raramente enfrentando réplica. Ucrânia? O acordo econômico dela com a União Européia escancararia unilateralmente o mercado da Rússia, omitida das negociações. O presidente russófilo Viktor Yanukovytch foi vítima de um “golpe de estado”, com a participação de nacionalistas radicais. Sobre a guerra civil, na série pouco se fala.
Criméia? Num referendo, mais de 90% dos votantes optaram pela reunificação com a Rússia. Síria? Pacificar primeiro, combatendo o terrorismo, depois negociações entre todos, de Assad à oposição armada, seguindo-se uma nova Constituição e então eleições livres sob supervisão internacional. Snowden? Putin não aprova o que ele fez, mas o problema caiu-lhe no colo e não caberia a ele puni-lo negando-lhe asilo.
Sua pretensa influência por meio de “hackers” para a eleição de Trump em novembro passado? “Não hackeamos as eleições de maneira alguma”, afirma ele. “Toda conversa sobre termos influenciado no resultado das eleições dos EUA, são todas mentiras”. E completa: “Temos esta regra de ouro a qual nos agarramos –nós nunca interferimos com os assuntos domésticos de nenhum país”.
Em entrevistas a Charlie Rose e a Stephen Colbert na TV americana, Oliver Stone defendeu a afabilidade de sua abordagem sobretudo como estratégia para fazer Putin falar. É preciso ler a transcrição completa dos encontros, no livro homônimo à série recém-lançado nos EUA (Hot Books, 288 págs, US$ 18,99), para constatar que Stone estava mais bem preparado, embora nada mais agudo, do que deixam entrever os trechos por vezes embaraçantes editados para a versão televisiva.
O volume apresenta o mais extenso mergulho na cabeça de Vladimir Putin desde o antigo (2000) livro de entrevistas autopromocionais “First Person” (PublicAffairs, 208 pags, US$ 16) em que se apresentava como novo homem-forte russo o ex-burocrata graduado da prefeitura de São Petersburgo, com opaco currículo na KGB, alçado ao poder por escolha pessoal do presidente Boris Iéltsin (1931-2007) ao este renunciar na virada de 1999 para 2000. Daqui a meio século, as conversas de Stone com Putin serão um registro histórico; hoje, Putin passa seu recado –e sorri.