Por Amir Labaki
Não é a toa que sejam distintos os subtítulos em francês e em inglês da exposição do fotógrafo e documentarista holandês Ed van de Elsken (1925-1990) aberta em meados deste mês no Jeu de Paume em Paris, depois de passar pelo Stedelijk Museum de Amsterdã. Como “La Vie Folle” (A Vida Louca), a mostra segue em cartaz na França até 24 de setembro próximo, enquanto estreara em sua terra natal subtitulada "Camera in Love” (Câmera Enamorada).
Cada expressão capta parcialmente uma das facetas da variada paleta de van der Elsken. A “vie folle” parece referir-se tanto a um assunto (o frenético viver a vida, sobretudo parisiense) quanto à biografia dele (outro holandês voador que não esquentava lugar). Por sua vez a “camera in love” sintetiza sua devoção estética, expressa por um impulso irrefreável pelo registro, tanto fotográfico quanto fílmico.
Embora destacando fragmentos de sua extensa obra como documentarista, a primeira retrospectiva francesa de Ed van der Elsken privilegia sua múltipla produção como fotógrafo. O diálogo entre ambas é estreito, até pela vinculação autobiográfica de muitos de seus filmes, em parte expressiva aparentada com os diários cinematográficos de Jonas Mekas.
Em “Bem-vindo à Vida, Pequeno Querido” (1963), por exemplo, van der Elsken acompanha o cotidiano familiar em Amsterdã, com sua segunda esposa, Gerda, e sua filha caçula, Tinelou, à espera do nascimento de seu segundo rebento. Já “Adeus” (1990) é um corajoso diário de sua batalha contra o câncer que o vitimaria aos 65 anos, encerrando-se com uma espécie de lema: “Faça seu melhor. Mostre ao mundo quem você é. Adeus”.
Não apenas neste gesto artístico final de autotransparência encontramos pontos em comum entre van der Elsken e outro mestre da fotografia e do documentário holandês do século 20, Johan van der Keuken (1938-2001). Presente em 1999 quando da sua primeira retrospectiva brasileira durante o É Tudo Verdade, van der Keuken também dedicou um longa-metragem, “Férias Prolongadas” (2000), à luta contra o câncer que o mataria dois anos mais tarde.
Ambos correram mundo empunhando suas câmeras, celebraram Amsterdã como seus habitats e Paris como Meca estética, e amavam o jazz americano como experiência dionisíaca insuperável. Mas muito também os diferenciava.
Fotografia era a forma de expressão prioritária para van der Elsken, enquanto cinema o foi para van der Keuken. Seus estilos também eram muito diferentes, mais intimista e impulsiva no primeiro, sobretudo épica e reflexiva no segundo.
Apesar dos treze anos que os separavam, a influência foi mútua. Van der Elsken debutou primeiro em exposições e publicações, mas a precoce estreia em 1955 do jovem van der Keuken em álbum fotográfico com “Temos 17” (anos) pessoalmente os aproximou.
Em 1984, van der Keuken reconheceu o impacto do conterrâneo num ensaio autobiográfico, não por acaso entitulado “Fotografia e Cinema”: “Fui estimulado por Ed van der Elsken: pela coragem como ele se colocava em cena como observador de seu próprio meio, pela maneira com que ele rompia com a atitude objetiva e sociológica da reportagem e pelo modo dele tratar a cor preta”.
Estas três características de fato saltam aos olhos na mostra no Jeu de Paume, as duas últimas já no começo da exposição, com as salas dedicadas à série “Amor em Saint-Germain-des-Prés”. Publicada em livro em 1956, o primeiro das duas dezenas que lançou em vida, trata-se de uma autêntica fotonovela documental, combinando registros espontâneos e encenados da juventude boêmia parisiense do começo dos anos 1950, tendo ao centro sua nova musa, a australiana Vali Myers (1930-2003).
São fotos em preto e branco de pessoas e personagens, corpos e gestos, sempre noturnas, com predomínio de negro carregado, em bares, quartos e ruas. Se você pensou em Nan Goldin, bingo!, ei-la no catálogo reconhecendo que, ao folhear o livro, “encontrei afinal meu predecessor”.
Anônimos e desajustados, sobretudo urbanos, permaneceram no centro do foco de van der Elsken aonde quer que fosse e mesmo em sua cidade natal, com a influência de Weegee (1899-1968) se fazendo sentir tanto na África do Sul sob apartheid quanto entre prostitutas e jovens da “yakuza” no Japão (um país ao qual retornava obsessivamente). Um interregno antropológico contudo se impõe no álbum “Bagara” (1958), registrado na hoje República Centro-Africana entre 1956 e 1957.
Outro livro de exceção é “Jazz 1955-1959” (1959), clicado na era áurea dos concertos em Amsterdã. Com a mesma ênfase nos tons pretos, variando formatos como nunca antes ou depois, sucedem-se retratos sem paralelo da patota toda, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, Count Basie e Duke Ellington, Dizzie Gillespie e Louis Armstrong, Sidney Bechet e Chet Baker. Artista do mundano, para Ed van der Elsken o sagrado pairava ali.