Por Amir Labaki
Jamais tive o privilégio de estudar com o crítico literário e sociólogo Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) mas fui distinguido com sua atenção em três encontros pessoais em 2003, 2012 e 2016. Foram conversas informais possibilitadas por minha amizade com o casal formado por uma de suas filhas, a escritora e designer Ana Luisa, e o cineasta Eduardo Escorel.
A primeira, e mais formal, aconteceu para celebrar em jantar a retrospectiva dedicada a Escorel pelo É Tudo Verdade. Para a segunda e terceira conversas, tive o privilégio de visitá-lo durante duas tardes na sala de seu apartamento nos Jardins em São Paulo.
Tomei notas detalhadas na saída do primeiro e do terceiro encontro. Lembro-me que o cinema e particularmente sua amizade com Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977) dominaram a segunda conversa, intermediada e partilhada por Ana Luisa.
Nas três vezes, Antonio Candido desarmou minha reverência com sua simpatia radiante, fala carinhosa e modéstia radical. Sua proverbial cortesia me pareceu intensificada por dois fatores: os laços de amizade familiar e a origem libanesa estampada em meu nome.
Já no jantar de apresentação, ele me acolheu afirmando-se “um libanês honorário”. “Um vez estava fazendo a lista de meus melhores amigos”, confessou-me. “Dentre os cinco maiores, três (eram) de origem libanesa”. Duas das famílias vizinhas à sua casa de infância em Poços de Caldas eram também libanesas, explicou-me nos encontros posteriores.
O terceiro fator a nos aproximar era a paixão por cinema. “Comecei a ir ao cinema aos 6 anos”, contou Antonio Candido durante o jantar. “Todo domingo tínhamos a fileira cinco da frisa do cinema de Poços de Caldas reservada para minha família. Quando Rodolfo Valentino morreu, quase morri com ele”.
A admiração por Valentino foi reafirmada em nosso terceiro encontro. “O maior ídolo era Rodolfo Valentino. O nome dele impressionava: Rudolfo Alfonso Raffaello Pierre Filibert Guglielmi di Valentina D‘Antonguolla. Lembro que vi em sala vários dos filmes dele: ‘Sangue e Areia’, ‘O Filho do Sheik’, ‘Monsieur Beaucaire’. A mãe dele era francesa e ele falava francês muito bem. Fazia questão de mostrar isso nos filmes, mesmo silenciosos. O letreiro dizia: ‘Jean, Philippe, et moi, et moi, articulando bem o ‘moi’, que nós diziamos ‘mói’. A morte dele foi a maior comoção publica”.
Ao lembrar Valentino, aflorava no professor o talento histriônico que encantava seus interlocutores. Antonio Candido era um ator nato, de encantadora comicidade. Só ao vê-lo em ação compreendi as raízes íntimas da ousadia de escrever em 1941 um manifesto grouchista no terceiro número da sóbria revista “Clima”, sustentando de saída: “O nosso tempo está cheio de credos novos. Entre os seus inumeráveis pregadores, entretanto, poucos têm a profundidade e a inspiração de Groucho Marx”.
Em nosso último encontro, ele me contou como brincava na infância de “cinema mudo”: “Mexiamos a boca sem soltar som, e em seguida dizíamos as legendas”. Um dos passatempos do pequeno Antonio Candido era fazer “cineminha em caixa de sapato”.
“Meu pai gostava de William Hart” (1864-1946, um dos pioneiros cowboys do faroeste ainda mudo); minha mãe, de cinema italiano”. Recordando a paixão de criança e de juventude por filmes, aos 97 anos ele me ofereceu um passeio de memória pelas salas de cinema que frequentava pelo centro de São Paulo.
“Assisti a “Cavaleiro de Ferro” (Alexandre Nevski, 1938, de Sergei Eisenstein) sete dias seguidos, no Cinemundi, um pulgueiro’, recordou. “Fiquei maravilhado. Pelo ritmo (marcando com a mão), pelas cenas, pela batalha”.
“Sou um obsessivo”, assumira ainda na primeira conversa, citando a coleção de 200 filmes em vídeo, hábito que com a entrada dos anos substitui a visita às salas. “Há filmes que revejo sempre. ‘La Règle du Jeu (A Regra do Jogo, 1939, Jean Renoir) é um deles. ‘Les Enfants du Paradis’ (O Boulevard do Crime, 1945, Marcel Carné), outro. Revi há pouco ‘La Grande Illusion’ (A Grande Ilusão, 1937, Jean Renoir). Quase toda semana assisto novamente ‘Il Delitto Matteotti’ (O Delito Matteotti,1973), de Florestano Vancini. É filmado como se fosse um documentário. Extraordinário”.
Nada catalisava maior efusividade em sua fala do que lembrar Paulo Emílio. "Paulo Emílio era nosso ídolo. Foi militante, foi preso, fez a revolução, conquistava todas as mulheres. Era um homem muito bonito, muito charmoso”.
“Paulo Emílio foi meu guru político”, frisou. “Sem ele, eu teria aderido à Juventude Comunista. Foi ele, que voltando da Europa (em 1940), conhecendo os processos de Moscou, nos orientou para o Socialismo Democrático. Mas nele a política durou quatro anos. Fiquei sessenta anos”.
Paulo Emílio trocou a política pelo cinema, o que creio explicar a escrita apenas pontual sobre filmes de um espectador apaixonado (e informado) como Antonio Candido. “Paulo Emílio inaugurou o ensaio cinematográfico no Brasil. Antes eram textos curtos, as críticas de Guilherme de Almeida tinham 20 linhas. Foi ele, em ‘Clima’, que escreveu com seriedade sobre cinema, como se escrevia sobre literatura, artes plásticas”.
De Antonio Candido jamais nos despedimos pois a memória guarda para sempre, da dimensão mais terrena e prosaica, a cordialidade intrínseca, a generosidade infinita, a ética inquebrantável, a inteligência arrebatadora, o cativante humor. Da dimensão pública do pensador do Brasil e de nossas artes, sua obra múltipla e extensa alimentará gerações à frente de nós como o fez com aquelas da qual fez parte e em vida formou. Ninguém é imortal mas eterno Antonio Candido se forjou.