Por Amir labaki
Dois cineastas estreantes em documentários de longa-metragem venceram as competições brasileira e internacional do É Tudo Verdade 2017, cujas itinerâncias em Brasília e Porto Alegre prosseguem neste final de semana. São respectivamente Tyrell Spencer, de “Cidades Fantasmas”, e a polonesa Anna Zamecka, de “Comunhão”. Igualmente jovem, mas já em seu segundo documentário longo, a chilena Maite Alberdi saiu vitoriosa na primeira disputa latino-americana do festival com “Los Niños”.
Além da juventude de seus realizadores, os três premiados têm em comum o respeito rigoroso a seus dispositivos cinematográfico. Spencer faz a autópsia, uma a uma, de quatro cidades abandonadas na América Latina: Humberstone (Chile), Fordlândia (Brasil), Armero (Colômbia) e Villa Epecuén (Argentina). Locais e pessoas são individualmente abordados. Uma vez dissecados, não há retorno.
Zamecka e Alberdi são estilisticamente mais próximas, com narrativas nascidas do real que correm como se em fluxo ficcional. “Comunhão” distingue-se pela ausência de entrevistas no mergulho do cotidiano de uma família disfuncional, pai omisso, filho autista e filha precocemente amadurecida.
“Los Niños”, por seu turno, inova no registro dos desafios dos portadores da síndrome de Down ao retratá-los na faixa dos 50 anos, exauridos por quatro décadas de igual rotina na mesma escola, sonhando com a liberdade de uma vida comum. São extraordinárias a empatia e a intimidade que ambas cineastas estabelecem para a filmagem com seus personagens, ecoando as lições do mestre americano Albert Maysles (1926-2015), de “Caixeiro Viajante” (1969) e “Grey Gardens” (1975).
A mesma fidelidade a uma estrutura formal previamente estabelecida marca o vencedor da competição brasileiras de curtas-metragens, “Boca de Fogo”, do também estreante Luciano Pérez Fernández, egresso do curso de pós-graduação “lato senso” em cinema documental coordenado por Eduardo Escorel na FGV-RJ. O foco aqui se detém sobre a narração radiofônica de uma partida de futebol no interior de Pernambuco, com o jogo em si sendo o menos importante.
Algo mais ortodoxo, mas igualmente cativante, é “O Cuidador” (De Hoeder), do holandês Joost van der Wiel, vitorioso na disputas de curtas internacionais. É o retrato de um médico generalista nonagenário, o doutor Nico van Hassell, que há sessenta anos exerce o ofício. Sua dedicada atenção a cada paciente confronta-se com as exigências da moderna medicina estandartizada. Mesmo que involuntariamente, “O Cuidador” dialoga de perto com o vencedor de Cannes no ano passado, “Eu, Daniel Blake”, de Ken Loach.
Pensando no apuro formal dos vitoriosos do festival deste ano, veio-me à mente uma das passagens mais memoráveis da conversa entre João Moreira Salles e Eduardo Escorel sobre “No Intenso Agora” dentro da 16a. Conferência Internacional do Documentário É Tudo Verdade Petrobras, cuja íntegra você já pode assistir em nosso site. Provocado por uma questão de Escorel sobre o impacto da perda do amigo e mentor Eduardo Coutinho (1933-2014) em pleno processo de edição do filme, João nos ofereceu uma original análise da trajetória e da produção do diretor de “Cabra Marcado Para Morrer” (1984) e “Edifício Master” (2002).
“A obra é maior do que cada filme”, afirmou Moreira Salles. “Existe um percurso”. Seria este o do desenvolvimento, nas palavras dele, “de um verdadeiro ‘cinema povero’”. “Qual é a gramática mínima do cinema?” seria a questão pesquisada, filme após filme, por Coutinho. Aos poucos, descartou ele locações externas, conhecimento prévio dos personagens, movimentos de câmera.
Ao fim, para construir seu cinema, Coutinho recorria a uma equipe mínima e fiel, um cenário único e pessoas comuns para conversar. Para este dispositivo de radical ascetismo, contribuía até sua limitação de movimentos, devido o peso dos anos e a consequente fragilização de saúde.
De “Cabra” ao póstumo “Últimas Conversas” (2015), foi de fato esta a curva de sua obra, a economia absoluta de elementos pautando a pesquisa estética dos limites do cinema. Diante deste raro grau de depuração, não surpreende que a cada É Tudo Verdade, de um jeito ou de outro, voltemos sempre a Eduardo Coutinho.