Por Amir Labaki
Dois dos vetores principais do documentário contemporâneo marcam os filmes de abertura na próxima semana da 22ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários. Na quarta, dia 19, no Rio de Janeiro, “Eu, Meu Pai e Os Cariocas”, da atriz Lúcia Veríssimo, representa o retrato autobiográfico de família. Já na quinta, dia 20, em São Paulo, “Cidade de Fantasmas”, de Matthew Heineman, sinaliza a força do documentarismo urgente de resistência.
Seguindo os passos da também atriz Denise Dumont ao produzir em 2008 o belo retrato de seu pai, Humberto Teixeira (1915-1979), em “O Homem Que Engarrafava Nuvens”, dirigido por Lírio Ferreira, Lúcia Veríssimo foi além, produzindo e assinando sua primeira direção em longa-metragem para contar a extraordinária trajetória de seu pai, Severino Filho (1928-2016). Maestro, arranjador, compositor, instrumentista e cantor, Severino foi um dos fundadores, ao lado do irmão Ismael Neto (1925-1956), e o principal esteio do mais cultuado e influente grupo vocal brasileiro, Os Cariocas.
Fundado em 1942 e ativo –com uma longa pausa- até a morte de Severino no ano passado, o conjunto atravessou a história da música popular brasileira desde o auge da era do rádio. Seu período áureo foi a Bossa Nova, que ajudou a estabelecer com uma histórica gravação de “Chega de Saudade” com João Gilberto ao violão em 1958. Quatro anos mais tarde, Os Cariocas continuavam a escrever a história do movimento ao participarem do mítico show na boate carioca “Au Bon Gourmet” ao lado de João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Seu sucesso internacional os levou a excursionar nos anos 1960 pela América Latina e pelos EUA. Por duas vezes em 1965 tocaram no principal “talk show” americano, o “Tonight Show” de Johnny Carlson. Pouco depois, em 1967, o conjunto paralisava suas atividades por 21 anos, segundo o filme devido principalmente ao abatimento psicológico de Severino diante da repressão da ditadura militar instalada em 1964. Durante esta interrupção, o maestro se manteve ativo sobretudo com trabalhos para a TV.
A partir de 1988, o conjunto retomou suas atividades, em shows, gravações, turnês e parcerias com grandes figuras das gerações que os sucederam, como Tim Maia, Milton Nascimento e Erasmo Carlos. Voltaram como se nunca tivessem parado. Outros grandes conjuntos vocais seguiram seu modelo, como o MPB-4 e o Boca Livre, sem jamais os superarem.
Lúcia Veríssimo reconstitui esta bela trajetória articulando, com grande ritmo, gravações e imagens de arquivo e generosos depoimentos de Severino e de outros membros das diversões formações, a começar de Badeco (1924-2014), um dos participantes do primeiro conjunto, ainda como quinteto. O impacto de Os Cariocas se faz ainda ouvir em valiosas entrevistas com um autêntico quem é quem da música brasileira e de especialistas como Zuza Homem de Mello e Ruy Castro.
De uma abertura a outra salta-se do sublime ao horror. A “cidade de fantasmas” de Matthew Heineman, indicado ao Oscar em 2015 por “Cartel Land”, é Raqqa, desde 2014 a capital síria do Estado Islâmico. Heineman faz a autópsia de sua transformação num inferno terreno com imagens da barbárie difíceis de suportar.
Os registros devem-se ao trabalho de resistência midiática de um grupo voluntário de jornalistas locais, o “Raqqa Is Being Slaughtered Silently” (Raqqa está sendo massacrada silenciosamente). Heineman começou a retratá-los quando vários de seus participantes iniciais já haviam se exilado e, ainda assim, permanecem em risco. Um de seus mentores, Naji Jerf (1977-2015), foi assassinado na Turquia em dezembro de 2015, já depois do começo das filmagens.
A caçada pelo EI aos membros do RBSS e mesmo a seus familiares visa intimidar o mais eficaz trabalho de captação e difusão de notícias “in loco” sobre o regime selvagem estabelecido pela organização jihadista. Heineman contrapõe didaticamente o trabalho cotidiano de jornalismo enraizado e de alto risco desenvolvido pelo RBSS e a sofisticada campanha publicitária do EI. São notícias do terror contra a autopropaganda dos bárbaros.
Nesta era de “fake news” e “fatos alternativos”, um documentário que celebra a busca corajosa de informações fidedignas, embora dilacerantes, funciona como um manifesto iluminista. “Cidade de Fantasmas” é um choque -e um alento.