Por Amir Labaki
O Oscar não fez falta a “Eu Não Sou Seu Negro”, o cinensaio a partir de James Baldwin (1924-1987) dirigido por Raoul Peck. No Brasil, em cartaz há um mês, superou a casa dos 20 mil espectadores e se tornou o cult da temporada de premiações, desbancando o vitorioso “Moonlight; Sob A Luz do Luar”. Já nos EUA, com mais de 5.750.000 ingressos vendidos em cinco semanas, num circuito dezenas de vezes maior, já é o 37o documentário de maior sucesso comercial na história. “O Apartamento”, do iraniano Asghar Farhadi, vencedor do Oscar de filme estrangeiro (disponível já no Now), arrecadou menos de um terço no mesmo período.
A radiografia da situação dos afro-americanos nos EUA entre o começo do século 20 e o fim dos anos 1960, desenvolvida por Peck a partir dos escritos de Baldwin, acaba de completar uma curiosa volta. O texto que virou filme voltou a se tornar texto com a publicação de “I Am Not Your Negro – From Texts by James Baldwin” (Vintage International, 144 págs, US$ 15), compilado e editado por Raoul Peck.
A base do volume é o roteiro transcrito do filme, contendo não apenas o texto sintetizado por Peck da escrita ensaística de Baldwin, lido no filme por Samuel L. Jackson, mas também os trechos citados de entrevistas, debates e diálogos de filmes hollywoodianos. O roteiro divide-se como que em seis cantos: Pagando Minhas Dívidas, Heróis, Testemunha, Pureza, Vendendo o Negro e Eu Não Sou Seu Preto (“nigger”, não “negro”, negro, como no título mais respeitoso do filme).
No livro, Raoul Peck apresenta esse roteiro com três ensaios próprios e um de sua montadora, Alexandra Strauss, bastante reveladores do processo de desenvolvimento de “Eu Não Sou Seu Negro”. Na abertura de sua “Em Nota Pessoal” na introdução, Peck revela as raízes do filme.
“Comecei a ler James Baldwin”, conta ele, “quando tinha quinze anos, em busca de explicações racionais para as contradições que estava confrontando em minha vida já nômade, que me levou do Haiti ao Congo, à França, à Alemanha e aos EUA”. Peck o inclui então num pequeno grupo de escritores, nomeadamente o poeta e ensaísta martiniquense Aimé Césaire (1913-2008), o romancista haitiano Jacques Stephen Alexis (1922-1961), o norte-americano Richard Wright (1908-1960), o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) e o cubano Alejo Carpentier (1904-1980), que representavam para ele “autores que estavam falando de um mundo que eu conhecia, no qual eu não era apenas uma nota de rodapé ou um personagem terciário”.
Nascido em 1953 em Porto Príncipe, Haiti, a trágica nação caribenha cujo pioneirismo no fim da escravidão foi soterrado nas páginas das histórias oficiais, Raoul Peck encontrou em Baldwin o guia para “unir os pontos” e ligar a história de seu país natal e a história dos EUA, com “sua própria herança dolorosa e sangrenta de escravidão”. “Baldwin me deu uma voz, me deu as palavras, me deu a retórica”, escreve Peck.
Um “flashback” de dez anos inicia o capítulo seguinte, sobre seu encontro com a irmã mais nova do escritor, Gloria Karefa-Smart. Peck a conheceu na casa dela na capital norte-americana para discutir sua proposta de trabalhar num “filme ainda indefinido” sobre a vida e a obra de Baldwin. “Me senti em casa e bem-vindo”, lembra o cineasta. Quatro anos mais tarde, Gloria lhe entregou “um pacote de cerca de trinta páginas” intitulado “Notes Toward Remember This House” (Notas para Lembre Esta Casa), o projeto de livro inacabado sobre os assassinatos nos anos 1960 de três líderes da militância pelos direitos afro-americanos nos EUA amigos de Baldwin: Medgar Evers (1925-1963), Malcolm X (1925-1965) e Martin Luther King Jr. (1929-1968).
“Aqui Raoul”, disse-lhe Gloria, “você saberá o que fazer com isso”. “E de fato eu sabia imediatamente”, confessa Peck. “Um livro que nunca foi escrito! É esta a história. E que personagens!”.
“As notas elas mesmas não eram muito para começar, mas eram mais do que o suficiente dado o fato de que eu tinha acesso a tudo mais de Baldwin”, explica. “Meu trabalho era achar aquele livro não-escrito. ‘Eu Não Sou Seu Negro’ é o improvável resultado daquela busca”.
Ao se deter no capítulo seguinte na escrita do texto do filme, Peck se compara a “um libretista trabalhando no roteiro de uma ópera a partir das palavras dispersas de um autor reverenciado”. A primeira versão, de 50 paginas, daria um longa-metragem de três horas.
Durante dois anos, com interrupções, Alexandra Strauss trabalhou com Peck na edição do filme, de duração final de 93 minutos. Duas chaves guiaram a “interpretação audiovisual da visão de Baldwin”: os filmes por ele vistos, sobre os quais escreveu criticamente em “The Devil Finds Work”, e, “para dar-nos a direção narrativa”, o manuscrito incompleto de “Remember This House”.
Assim nasceu um clássico.